A Interseccionalidade em Mulheres, Raça e Classe de Angela Davis

Por Laura Finesso Chalegre

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Aviso de gatilho: abuso sexual, violência racial.

Publicado em 1981, Mulheres, Raça e Classe é uma das obras pioneiras ao propor analisar os movimentos abolicionista e feminista desde meados da Guerra Civil Americana (Guerra de Secessão, que durou de 1861 a 1865), até a Segunda Onda Feminista, iniciada na década de 1960.

Para compreender a obra em sua totalidade e a forma de abordagem das pautas, é necessário conhecer quem é a autora; Angela Davis, nascida em 1944, é graduada em Literatura Francesa, iniciou sua pós-graduação em Filosofia com orientação de Theodor Adorno; porém, interrompeu seus estudos quando o movimento dos Direitos Civis ganhou força nos Estados Unidos, por volta de 1967. Ao mesmo tempo que lutava pelos direitos dos negros, também trabalhava em sua tese de doutorado, com orientação de Herbert Marcuse.

Nessa mesma época, Angela Davis prestou apoio ao Partido dos Panteras Negras; e por mais que não fosse filiada ao partido, acabou sofrendo forte perseguição sob falsas acusações, chegando até mesmo a ser colocada na lista de 10 criminosos mais perigosos do país. Ela fugiu durante um tempo, mas foi presa em 1971 e passou um ano e seis meses em cárcere, gerando o movimento cultural de caráter nacional “Free Angela Davis” (Libertem Angela Davis).

Poderia me estender durante parágrafos e mais parágrafos falando sobre a vida dessa tão ilustre militante, mas posso resumir dizendo que: sua vida e sua experiência ameaçavam as classes dominantes, pois conferia autonomia ao povo negro e apontava os culpados pelas diversas violências que os negros sofreram.

Em pouco mais de 240 páginas, Angela faz um panorama esclarecedor do início do movimento sufragista nos Estados Unidos e suas relações com o movimento abolicionista. Ela faz uma crítica profunda a todos os envolvidos, principalmente ao racismo no movimento sufragista.

Ainda hoje, pessoas negras explicitam a necessidade de Interseccionalidade (estudo da intersecção de sistemas de opressão) nos movimentos sociais, principalmente o feminista, que se derivou do movimento sufragista. Levando em conta que essa discussão se estende desde Frederick Douglass, fica claro que há um grande retrocesso; ou, ainda, que o movimento feminista está estagnado em um local que só compreende as pautas de mulheres brancas da classe média. Como Angela diz no capítulo 4: “Racismo no movimento sufragista feminino”, “as ex-escravas e ex-escravos sofriam uma opressão que diferia, em essência e em brutalidade, dos constrangimentos impostos às mulheres brancas de classe média.

Tendo isso em vista, a falta de Interseccionalidade no feminismo (principalmente o que chega nas grandes massas) é produto de uma negação e falta de autocrítica que se estende pela história.

Como analisar a opressão sobre as mulheres, sem analisar também a opressão sofrida pelas mulheres negras durante a escravidão? Como falar em aborto legalizado para que as mulheres pudessem seguir suas vidas e carreiras de forma plena, para planejar suas gestações, se as mulheres negras e pobres (desde a escravidão) fazem abortos para não perpetuar o sofrimento e a miséria que carregam consigo?

Essa última pergunta é respondida no capítulo 12, chamado “Racismo, controle de natalidade e direitos reprodutivos”, em que Davis discorre sobre o movimento de descriminalização do aborto durante a Segunda Onda Feminista, que mais uma vez deixou de lado as pautas raciais.

Além dos assuntos já mencionados, Davis argumenta sobre as heranças que a escravidão deixou. Uma delas é a desumanização do escravizado, que levou a animalização dos negros, que se perpetuou pela cultura americana; como por exemplo, nas caricaturas dos negros na mídia. Mas além disso, ela aborda a violência contra a mulher negra sobre uma diferente perspectiva; por mais que os negros não sofressem distinções aos olhos dos colonizadores entre si, por sequer serem considerados humanos, a mulher negra passava pelo agravante que era o estupro. O estupro, nesse contexto, era uma arma coercitiva e forma de reafirmação do poder do homem branco colonizador.

E esse crime, que hoje é um dos que mais crescem nos Estados Unidos e no Brasil, também traz consigo mais uma forma de discriminação racial: o mito do estuprador negro, que a autora aborda no capítulo 11: “Estupro, racismo e o mito do estuprador negro”. As falsas acusações de estupro contra os homens negros é uma forma de justificar as ondas de agressões racistas que a comunidade sofre, e só quem mais pode se compadecer e entender os homens negros nessa situação, são as mulheres negras vítimas desse crime. Angela diz, no mesmo capítulo, que “O nó histórico que ata as mulheres negras (sistematicamente abusadas e violadas por homens brancos) aos homens negros (mutilados e assassinados devido à manipulação racista das acusações de estupro) apenas começou a ser reconhecido de modo significativo. Sempre que as mulheres negras desafiaram o estupro, elas expuseram simultaneamente o uso das acusações falsas de estupro enquanto arma mortal do racismo contra seus companheiros.” Em outro momento, ela diz: “Uma das características históricas marcantes do racismo sempre foi a concepção de que os homens brancos - especialmente aqueles com poder econômico - possuiriam um direito incontestável de acesso ao corpo das mulheres negras. […] A coerção sexual, em vez disso, era uma dimensão essencial das relações sociais entre o senhor e a escrava. Em outras palavras, o direito alegado pelos proprietários e seus agentes sobre o corpo das escravas era uma expressão direta de seu suposto direito de propriedade sobre pessoas negras como um todo.

Além de todos os temas já mencionados nessa resenha, Angela também aborda a educação como forma de libertação do negro escravizado (já que até mesmo o direito de ler lhe era negado) e a importância da luta de classes para o fim do sistema escravagista, que perdura até hoje, ainda que de forma não tão explícita como antes.

É difícil definir, em algumas linhas, a notoriedade dessa obra. Esse não é um livro que deve ser lido em poucos dias, mas sim desfrutado, analisado e sempre revisitado. É imprescindível que, o que a Angela abordou nele, deve ser levado adiante. Fica claro que não há como libertar a mulher de suas opressões, sem antes compreender as relações de raça e classe que estão intrinsecamente relacionadas ao sistema opressor e, consequentemente, ao movimento que se propõe a libertá-las; além disso, não é possível pensar um feminismo que não tenha em mente, também, libertar o homem negro das agressões sofridas por ele, que por muitas vezes é feita sob a justificativa do mito do estuprador negro. Ainda, não há como olhar para a escravidão, sem também olhar para o caráter patriarcal e violento da colonização, que deixou uma ferida que sangra abundantemente.

Finalizo recomendando esse livro para todos que desejam ampliar seu olhar sobre as relações de gênero, raça e classe. Angela foi (e ainda é) revolucionária, seja em seus livros, palestras, ou na sua resistência aos opressores que tentam lhe derrubar, por saber o poder que sua existência carrega. Leiam Angela Davis! Leiam Mulheres, Raça e Classe!