Literatura como direito fundamental, fator de inclusão: um tributo ao mestre Candido

Por José Ricardo Satilio da Silva

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Um outro traço interessante da literatura e, por isso, dizemos que seja a arte mais utilizada pelos seres humanos, é a força inclusiva da qual faz uso. Pois, de Shakespeare a Ferrez todos podem escrever, ou seja, dos castelos reais britânicos aos barracos do Capão todos têm voz.”

Neste brilhante ensaio o sociólogo e crítico literário Antonio Candido afirma que a literatura tem de ser vista como um direito básico do ser humano.

Antonio Candido

“a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” – Antonio Candido, do ensaio “O direito à literatura”, no livro “Vários escritos”. 3ª ed.. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS.

Na atual quadra histórica, podemos vislumbrar a superação das grandes injustiças que há muito nos perseguem enquanto sociedade. No entanto, os desígnios do capital, bem como seus interesses mais comezinhos não vão à essa direção.
Com efeito, vão à direção contrária de mais concentração de renda, menos equidade, somado a exploração, repressão com a mais profunda degradação humana.
O que, por sua vez, deixa-nos perplexos na medida em que vivemos, como bem preconizou Bobbio, na era dos direitos, sobremaneira os direitos humanos desde a Declaração dos Direitos do Homem em 1789 que se busca maior igualdade e o tratamento decente.
Na modernidade, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da Organizações das Nações Unidas ( ONU), continuamos na busca pela extensão de Direitos como: direito à vida, igualdade, liberdade, fraternidade (bastiões da revolução Francesa e burguesas em geral) .
No entanto, há um amálgama entre tais direitos, ato contínuo que precisam ocorrer juntos para uma maior efetividade. Neste sentido, Hegel nos traz grande contribuição, pois a um só tempo junta -os em favor de sua efetividade concreta, isto é, não basta a garantia formal, mas é preciso que se efetivem.
Dessa forma, para o insigne autor alemão para se ser livre, por exemplo, é necessário antes de qualquer coisa estarmos vivos. Para além da obviedade da proposição, o que Hegel quer trazer-nos dialeticamente são as relações reais de como os sistemas governamentais mundo a fora garantem tal direito, isto é, quais políticas de proteção social são implementadas, bem como quais planos de desenvolvimento são efetivamente colocados em prática.
Ademais, sendo o Homem (na acepção ampla da palavra) um ser social só se é livre em sociedade, no envolvimento com o outro. Isto é, somente se tivermos uma acepção de sujeitos de direito com iguais direitos ante a outro sujeito de direito, seremos livres. Se pudermos todos participar ativamente com igualdade na esfera política é que seremos livres.
Para que se alcance a liberdade é necessário o reconhecimento, pois os direitos humanos são extensivos aos seus destinatários, os humanos, contudo somente o reconhecimento mútuo pode legar-nos tal status, ou seja, apenas quando um sujeito se reconhece no outro, num exercício máximo de alteridade, é que se chega ao status de liberdade.
Se, entretanto, houver déficit de reconhecimento, por exemplo, a de um negro numa estrutura racista que, goze de direito políticos, bem como de direitos civis está amparado na esfera político- jurídico- institucional, porém não exerce sua liberdade plenamente tendo-se por conta os preconceitos a que é submetido.
Assim como as mulheres num sistema patriarcal não tem plena liberdade, em razão das estruturas que a determinam. Ou seja, o reconhecimento também é social, isto é, da -se no seio das relações intersubjetivas sociais.
Exemplo mais candente é dos indivíduos que vivem abaixo da linha da pobreza , uma vez que, ainda que tenham direitos formais, são alijados dos meios básicos de subsistência, isto é, da força vital. Desse modo, não conseguem exercer sua liberdade que se afigurará apenas no campo da formalidade .
A liberdade deve está junta de outros diretos fundamentais (vida, alimentação, direitos políticos) para se efetivar.
Ademais, tais direitos não são absolutos, irrestritos e muitas vezes podem até mesmo se conflitar, desta maneira, colocar-se-a uns sobre os outros. Deste modo, pensemos na pandemia em que países como a China decretaram um severo lockdown e logo superaram a crise. Isto é, privilegiou-se a vida em detrimento do capital, já em países como o Brasil no qual se acusam a China de autoritarismo comunista (o que já se coloca como um erro, pois os asiáticos em questão estão muito mais para um capitalismo de Estado) foi privilegiado o capital, e reverberaram lutas contra as medidas de afastamento social sob a égide de luta por liberdade. Porém, como bem nos ensinou George Orwell, liberdade é escravidão e neste caso específico o passaporte para compormos as mesas frias dos necrotérios.
Ainda que no art. 5° de nossa constituição Federal seja preconizado os direitos humanos (embora que, no Brasil, para muito seja os direitos dos manos) fundamentais, resta-nos claro que sua efetividade é baixa se concretamente considerados, pois formalmente são garantidos, mas padecem de aplicação equitativa isonômica para se efetivarem, ou seja, como disse Aristóteles, tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Enfim, no rol de direitos garantidos na Carta Política brasileira é extenso (vida, igualdade, saúde, lazer, educação), todavia a literatura não está presente, mas Antonio Candido entendendo o caráter necessário dela ousou colocá-la por lá.

A LITERATURA.

Surgida há 4 mil anos, ela moldou a vida da maioria dos seres humanos da Terra. Consagrada primeiro na oralidade, sobretudo na tradição de matrizes africanas, a literatura é a forma de arte em que o ser humano mais se espraiou.
Todo ser humano precisa de fabular, uma vez que o quotidiano por si é insuportável. Todos nós precisamos sonhar. Ademais, na literatura, há interação, reconhecimento e composição subjetiva.
Quem nunca pensou está no lugar ou se reconheceu em algum personagem de Machado, Graciliano, Dostoiévski, Ricardo Lisias, Jeferson Tenório, Maria Carolina de Jesus, Ferrez, Marçal Aquino ou Conceição Evaristo.
Um outro traço interessante da literatura e, por isso, dizemos que seja a arte mais utilizada pelos seres humanos, é a força inclusiva da qual faz uso. Pois, de Shakespeare a Ferrez todos podem escrever, ou seja, dos castelos reais britânicos aos barracos do Capão todos têm voz.
Neste sentido, a prof Vima Lia Martin Rossi afirma que devemos ler não apenas os clássicos, bem como aquela literatura feita à margem do cânone . A partir dessa perspectiva ampla podemos pensar uma sociedade mais inclusiva, tolerante e democrática, já que com maior diversidade novas visões de mundo podem ser criadas.
De mesmo modo, a literatura plural pode ser um ponto de encontro e reconhecimento, porque um garoto das periferias ou dos rincões do país, vai se sentir mais representado ou até mesmo interessado por aquilo que dialogue com ele.
No entanto, a coisa não se dá facilmente, pois há ainda muita resistência. André de Godoy Bueno pesquisador e doutorando da USP trabalha com o tema das literaturas afro brasileiras e africanas e encontra alguma resistência. Certa feita, em ocasião de entrevista com professores da rede pública municipal, foi revelado o preconceito em torno das religiões de matrizes africanas, em que pese a laicidade do Estado.
Desta maneira, a proposição do mestre Cândido se faz essencial, pois além do caráter constitutivo cultural da literatura, bem como de sua presença marcadora do espírito humano, da contemplação artística que nos retira da caverna platônica em que somos colocados; ela também goza desse atributo de ser inclusiva abrindo espaço para todos os povos em tempos e lugares diversos para se inter-relacionarem e construírem suas idiossincrasias, isto é, as características comum a determinado grupos que, muitas vezes, clamam por sobrevivência, pelo direito de liberdade na acepção hgeliana do termo.
Com efeito, aqui, talvez resida sua maior característica que a levaria para o status de direito fundamental que Antonio Candido propugnava.

MARCADORA DE (INTER) SUBJETIVIDADES.

Recentemente, a psicanálise e a psicologia cognitiva aprofundaram a construção do psiquismo, o qual ocorre desde os primeiros meses de vida a partir das interações relacionais .
O bebê já na mais tenra existência ao ouvir as vozes que o circundam, consegue compor, por meio da relação com o adulto que,dele, cuida, significados para suas experiências até o momento em que transfere-o para a linguagem verbal.
Tais interações utilizam-se de todos os sentidos: tato, olfato, paladar, audição e visão.
Neste sentido, D. Winnicott já havia lembrado da delicadeza que é pre- verbal, não verbalizada, não verbalizável, exceto por meio da poesia.
Tais ciências também se ocuparam da relação que o bebê tem com o rosto da mãe, local, em que tem encontrar tanto a si mesmo quanto descobrir o humor de quem lhe oferece cuidados.
Com a leitura, talvez, seja a mesma coisa, uma criança ávida por encontrar-se com aquilo que explora ou teme, isto é, inquietante, fascinante que está dentro dela e que, no mais das vezes, ela ignora porções consideráveis e muitas vezes se revela em ocasião do encontro com as páginas; este ligar distante e recôndito que, é, contudo onde nos abrimos ao outro. Aí está grande parte do segredo dos leitores, ao contrário dos demais que insistem em evitar.
Com efeito, assim como preconiza Antonio Candido, a literatura tem esse poder de nos abrirmos para o mundo, para a existência do outro . Ela nos conduz à vida que não é nossa, faz -nos refletir sobre a dor alheia, sobre empatia, a vida . É nela também que se manifestam as diversidades, e nestas dão-se as relações intersubjetivas, por intermédio das vidas alheias, isto é, a existência do outro, a qual, muitas vezes, não se dará fisicamente, mas por intermédio da literatura e suas possibilidades.

ENSINO DA LITERATURA.

No capitalismo neoliberal, a literatura foi totalmente balcanizada, como tudo na sociedade da valorização do valor, foi transformada em mercadoria.
As universidades, por sua vez, sobretudo as privadas, passaram a olhá-la com desdém, visto que o mercado pouco se interessa por um ensino que não apresenta um resultado prático e imediato.
Leyla Perrone Moisés, em seu Mutações da Literaturano séc XXI apresenta algumas proposições do porquê de tal situação.
Uma delas é o tratamento desinteressado que a literatura recebe, pois é vista como mais uma forma de linguagem apenas, o que na dicção da autora é um reducionismo da matéria.
Perrone, ainda discuti o desleixo com que é tratada a língua padrão, porém reconhece ( reconhece com alguma ironia)o símbolo de poder que esta é, uma vez que representa o estabelecimento de poder político e econômico de um determinado grupo social.
Ela diz que nos esquecemos de que os alunos, supostamente, alijados da língua padrão irão se deparar com ela na vida prática.
Questão polêmica, pois devemos defender um ensino de alta qualidade, mas sem perdemos de vista a necessidade de pluralizar tal ensino a fim de demonstrarmos a diversidade socio-cultural de nosso país, bem como alcançarmos maior qualidade democrática.
Outrossim, com a literatura dá-se a mesma coisa. Porque além do desprezo gerado pelo capitalismo, ainda tem-se uma resistência à literatura na medida em que, ou ela é clássica demais, portanto complexa e não pode ser dada aos alunos; Ou ela é baixa literatura ( entretenimento ) não é, pois, literatura.
De novo defendo a parcimônia, uma vez que é necessário um olhar crítico e cirúrgico para o estabelecimento dos ensinos literários; crítico na medida em que faz-se necessário a proposição de textos variados, os quais possam proclamar a pluralidade com vistas ao fortalecimento democrático e à diversidade cultural. E cirúrgico para perceber e respeitar o momento dos leitores, dada a complexidade de cada indivíduo, bem como a miríade de comportamentos, é preciso percebemos o momento de trocarmos o Harry Potter por Machado de Assis, isto é, respeitar o tempo evolutivo de cada um sem pressão, mas também sem negar-lhes as leituras mais complexas.
Por fim, a literatura não sabe coisas, ao contrário da física, da matemática e da gramática, ela sabe das coisas. E por delas saber, muito tem a nos ensinar com seu caráter atemporal transcendente. Com sua força penetrante, consegue adentrar no mais profundo da alma humana e promover reflexões substantivas, as quais podem promover mudanças sociais concretas.
Como diz, Jacinto Prado Coelho:
“ A literatura não se fez para ensinar: é a reflexão sobre a literatura que nos ensina.

CONCLUSÃO.

O professor, escritor, crítico literário e pesquisador do tema, pois estas são algumas das várias facetas do grande mestre Antonio Candido, via na literatura a possibilidade de humanização.
Para ele, uma obra como, Os Miseráveis de Victor Hugo tinha o poder de transportar as pessoas para uma realidade que as fariam se contemporizar com as personagens, bem como tirá-los do espaço de objetificação e animalização em que são colocados .
Ao mesmo modo pode ocorrer com seus pares, isto é, o olhar sobre o outro pode mudar a partir das experiências literárias dos indivíduos.
Candido, todavia, combatia veemente um certo elitismo que rondava a literatura, pois, para ele, Machado, Dostoiévski, Os Lusiadas podem e deveriam ser fruidos por todos os níveis se a nossa sociedade não segregasssem as camadas mais pobres da que as compõe.
Ademais, há no imaginário social a falsa ideia de que as minorias as quais podem acessar aos bens culturais, inclusive a literatura o fazem sempre. Na verdade o fazem mais por um esnobismo do que por interesse.
Tal situação demonstra uma espoliação daqueles que poderiam, se tivessem a oportunidade, interessar por literatura e arte em geral.
Pobres e analfabetos são privados de bens espirituais do mais alto-relevo.
No Brasil, também faz-se uma distinção entre cultura erudita e popular, ao passo que querem relegar aos despossuídos a cultura popular (a qual também deve ser valorizada); mas as culturas e seus bens, isto é, suas produções devem está ao alcance de todos indistintamente.
Portanto, tal distinção não pode servir de justificativa para essa clivagem atroz.
Candido, por fim, defende a literatura enquanto espaço e mecanismo de auto realização, aperfeiçoamento e depuração do espírito humano algo imprescindível, portanto.
Numa sociedade justa pressupõe-se o respeito aos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas modalidades, bem como níveis e camadas é um direito inalienável, posto que ela nos humaniza.
(…) há “conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

Bibliografia

BUENO, André Godoy. Estudo de literaturas Africanas precisa de melhorias. data publicação: 16 fev.2016. fonte: Educação USP. Disponível em:< https://www5.usp.br/noticias/educacao/ensino-de-literaturas-africanas-precisa-de-melhorias/>. Acesso em: 27 abr. 2021.

Perrone-Moisés, Leyla. Mutações da literatura no século XXI- 1.ed. - São Paulo : Companhia das letras, 2016. p. 70-82

Puchner, Martin. O Mundo da escrita: Como a literatura transformou a civilização. tradução: Pedro Maia Soares.- 1.ed. - São Paulo: Companhia das letras, 2019. p. 9 - 24

PETIT, Michele. A Arte de ler ou como resistir à adversidade . tradução: Arthur Bueno e Camila Boldrini. 2. ed.- São Paulo: Editora 34, 2010. p. 52 - 55.

Antonio Candido: O direito à literatura. Disponível em:< https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/antonio-candido-o-direito-a-literatura/>. Acesso em: 27abr. 2021.

MANOEL, Jones. Hegel, a pandemia e a liberdade. Disponível em:<https://youtu.be/VFE9evnZRGw>. Acesso em: 27 abr.2021.

ROSSI, Vima Lia Martin. Literatura em movimento. Disponível em: <https://youtu.be/e3HdMQx71xA>. Acesso em: 27 abr. 2021.