Uma estética da fome

Por Luka Oliveira, Thiago Alves e Caroline Locatelli

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“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, essa é a proposta do maior movimento do cinema brasileiro. Entre os anos 60 e 70, aconteceria no Brasil algo revolucionário e, talvez, uma das iniciativas mais originais do cinema. O Cinema Novo.

Com a proposta de se distanciar do cinema norte-americano, os diretores brasileiros se reúnem para colocar em uma imagem aquilo que somente um brasileiro apaixonado pela sua cultura conseguiria colocar. A raiz do Brasil.

A raiz do Brasil para esses cineastas era a força do povo. O povo é aquele que trabalha para manter a família, que luta contra a exploração e que combate a desigualdade do dia-a-dia. É o povo que mantém a esperança e busca o brilho de uma vida melhor. O movimento do Cinema Novo decidiu explorar e homenagear tudo aquilo que, de fato, representa o Brasil. A pluralidade cultural, a simplicidade e a força do sertanejo, a música popular, e, principalmente, a realidade social do povo brasileiro. Assim, a linguagem cinematográfica do Cinema Novo é a cultura brasileira.

Através de suas câmeras e das narrativas fílmicas, os filmes dos Cinema Novo são, acima de tudo, um manifesto. Os diretores motivaram-se a usar seus filmes como críticas sociais. Leon Hirszman, David Neves, Joaquim Pedro de Andrade, Luiz Carlos Barreto, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni e Glauber Rocha são os principais nomes que consagraram o Cinema Novo. A estética dos diretores é sempre voltada pelo apelo popular e pelo potencial crítico do filme.

Glauber Rocha, um dos diretores mais polêmicos do movimento, coloca o cinema como uma expressão revolucionária e potencialmente desenvolvida para formar a conscientização do espectador que entra em conta com o filme. Assim, a estética da fome representa o brilhantismo do Cinema Novo. Seja como uma ferramenta de densa crítica social ou como uma representatividade brasileira na sétima arte.

“Somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.” – Glauber Rocha

O que Glauber Rocha e outros diretores do Cinema Novo evidenciam nos seus filmes, são as formas de exploração e miséria. Outra faceta brilhante do Cinema Novo é usar a narrativa fílmica como uma ferramenta para instigar e fomentar o debate político na sociedade.

Bom, agora para enfatizar a beleza e a filosofia do Cinema Novo, faça uma viagem através da resenha do Filme “Deus e o Diabo na terra do Sol”, através das palavras de nossa colunista e poetisa Carol.

DESIGUALDADE E INJUSTIÇA NA TERRA DO SOL

É com Manoel observando um boi morto e rodeado por mosquitos, que se inicia a obra de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), esta que se consagrou como uma grande representante da primeira fase do Cinema Novo.

A primeira fase do Cinema Novo, que perdurou entre os anos de 1960 e 1964, foi marcada pela estética da fome, da violência e da religião, com teor crítico, as obras desta fase direcionaram os olhares de uma classe média e intelectual ao nordeste, que até então sofria de altos índices de analfabetismo, miséria, ausência de saneamento básico e de hospitais, sendo subjugados por uma elite canavieira.

Por falta de perspectiva de melhoria, o sertanejo buscava refúgio sobre o crucifixo ou abaixo do chapéu do cangaço, e é com essa perspectiva que se constrói a obra de Glauber.

Na primeira parte do filme, somos apresentados a Manoel e Rosa, um casal de sertanejos que vislumbra no negócio de venda de gado, a possibilidade de adquirir uma terra.

Mas como apresentado por Chico Buarque na música Tema para Morte e Vida Severina:

“Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

A parte do latifúndio que cabe ao sertanejo é a cova da sua morte, e não sendo diferente para Manoel, o seu plano não é consumado.

Ao combinar uma partilha de vacas com o Coronel Moraes, parte delas morre no caminho, sendo essas as do Coronel, já previamente demarcadas. Não aceitando o prejuízo, o Coronel decide que todas as vacas que estão vivas ficarão com ele, dizendo: “A lei tá comigo”, no que Manoel questiona “Que lei é essa que não protege o que é meu?”, e é essa busca por justiça que motivará o personagem durante a sua jornada, ao perceber esta injustiça social, Manoel decide fazê-la com as próprias mãos, matando o Coronel e fugindo com Rosa.

Na segunda parte presenciamos a procura do sertanejo por um lugar de pertencimento, Manoel encontra o grupo de peregrinação de Santo Sebastião, que escancara a desigualdade social e prega uma justiça divina, que é reconfortante ao povo por defender que se não há justiça na terra, há no céu.

“O homem não pode ser escravo do homem, o homem tem que deixar as terra que não é dele, e buscar as terra verde do céu. Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus, e quem é rico vai ficar pobre nas corcunda do inferno. E nós não vai ficar sozinho porque meu irmão Jesus Cristo mandou um anjo guerreiro com sua lança para cortar as cabeça dos inimigo.”

Sebastião também defende a existência de uma ilha onde não há seca, miséria, fome, um paraíso que dá ao nordestino a ilusão de uma vida melhor, tão utópica quanto a Ilha da obra Utopia de Thomas More, ou o latifúndio que Manoel sonhava ter.

“Agora eu digo, o outro lado de lá, deste monte santo, existe uma terra onde tudo é verde, os cavalo comendo as flor e os menino bebendo leite nas água do rio. Os homem come o pão feito de pedra e poeira da terra vira farinha.”

Na obra de More, a fé é tida como consequência da razão e instrumento para exercício da justiça, sendo que isso é claramente representado pelo personagem de Sebastião na obra de Glauber.

Manoel vê no Santo um mestre e se torna o seu subserviente, acreditando em todas as suas palavras e agindo com devoção, em contrapartida aos desejos de Rosa que percebe o fanatismo religioso e a ilusão pregada por Sebastião, que não propunha uma solução tangível para a miséria de todo aquele povo. O estopim se dá com a exigência do sacrifício de um bebê e da Rosa, por parte do Santo Sebastião, como uma forma de expurgação de todos os pecados cometidos. O sacrifício do bebê é efetivado, e em um momento de desatenção, Rosa crava uma faca no corpo de Sebastião, matando assim o líder messiânico que levava esperança àquele povo.

Em paralelo a isso, Antônio das Mortes havia sido contratado por um Padre para pôr fim à vida de Sebastião, comparando este a Antônio Conselheiro com o seu arraial de Canudos.

“É preciso impedir que Sebastião se torne o novo Conselheiro.”

A comparação é condizente, pois, Antônio Conselheiro foi um líder religioso de um grupo de sertanejos, escravos, camponeses entre 1893 e 1897 na Bahia, sua peregrinação teve fim em no arraial de Canudos, nomeado de Belo Monte por Conselheiro. Fora criada em Belo Monte uma sociedade igualitária, rural e autossustentável, que passou por inúmeros ataques e ameaças até ser exterminada com frieza. Analogamente, Sebastião termina sua peregrinação em Monte Santo, mas o mesmo não consegue continuar sua missão, pois é morto por Rosa enquanto Antônio mata os seus fiéis até chegar ao Santo, que jaz ensanguentado e sem vida.

Na terceira parte do filme, Manoel e Rosa são poupados pelo Antônio da Morte e novamente partem em busca de um lugar, um propósito. Dessa vez eles se deparam com o cangaceiro Corisco, diabo de Lampião. Assim como Sebastião, Corisco é um personagem inconformado com a injustiça, mas prega a justiça ativa, feita pelo povo através da violência. O cangaceiro acredita ser o portador do espírito do já falecido Lampião.

“Virgulino acabou na carne, mas o espírito está vivo. O espírito está aqui no meu corpo que agora juntou os dois. Cangaceiro de duas cabeça. Uma por fora e outra por dentro; uma matando e outra pensando. Agora eu quero ver se esse homem de duas cabeça não pode consertar esse sertão. É o gigante da maldade comendo o povo para engordar o Governo da República. Mas São Jorge me emprestou a lança dele pra matar o gigante da maldade.”

Primeiramente, é importante ressaltarmos esse paralelismo entre Sebastião e Corisco presentes na dialética moral e em seus discursos que são reflexos, Corisco menciona que São Jorge emprestou a lança dele para que assim ele possa matar o gigante da maldade, enquanto Sebastião diz que Jesus mandará um anjo guerreiro com uma lança, para cortar a cabeça dos inimigos do povo. Com isso vemos claramente a oposição de um personagem que defende que o próprio povo faça justiça, e outro que acredita que a justiça deve ser divina.

Além disso, temos personalidades históricas que agem como fios condutores dos personagens de Glauber, enquanto Sebastião age analogamente ao Antônio Conselheiro, Corisco é a sombra de Lampião e é inspirado no verdadeiro Corisco, integrante do bando de Lampião. Virgulino Ferreira da Silva, apelidado de Lampião, foi um cangaceiro que viveu entre 1898 e 1938 e atuou no sertão nordestino realizando assaltos e assassinatos como busca de justiça social.

Por tratar o problema efetivamente, Rosa adere ao grupo e passa a ser incluída nos assaltos, diferentemente do grupo anterior em que era segregada. No entanto, Antônio da Morte novamente é convocado, mas desta vez para matar Corisco e seu bando. Corisco é morto em um duelo com Antônio, e novamente Antônio e Rosa fogem por esse purgatório que é o sertão.

Em toda essa narrativa acompanhamos a história de um povo abandonado pelo seu próprio país e governo, abandonado com fome, sem terra e sem destino, um povo que precisa se apegar à utopias para viver, na eterna espera de um retorno divino, na esperança do sertão virar mar e do mar virar sertão, e quando não, precisa buscar refúgio no cangaço, tomando à força aquilo que não lhes é dado. E quando a elite ou o governo volta seus olhares para esse povo, é para tomar seus líderes, assassinando-os bruscamente junto com os seus seguidores, o pedido de ajuda só é ouvido quando incomoda, mas a ajuda é recusada e o sertanejo é calado. E o que resta para muitos Manoéis e Rosas é a fuga, na busca de uma Ilha chamada Justiça, quiçá Igualdade.

A mensagem do Cinema Novo não ficou parada ali nos anos 60,70 tão pouco a luta da Classe Trabalhadora. Pensando nisto, nosso Colunista e resenhista profissional Thiago, fez uma resenha do filme “Bacurau”, o mais atual fenômeno do Cinema Brasileiro!

BACURAU

Tem filme nacional contemporâneo na revista A-Sol? Tem sim senhor!

O filme é dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e, vale comentar, não é recomendado para menores de 16 anos.

Pouco após a morte de dona Carmelita, aos 94 anos, os moradores de um pequeno povoado localizado no sertão brasileiro, chamado Bacurau, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa.
Aos poucos, percebem algo estranho na região. Disponível nos canais Telecine ou por outros meios, Bacurau, vale destacar que é uma boa surpresa seja pelo seu suspense ou pelo seu drama. As cenas com drones torna a narrativa do muito mais emocionante e diferente.

O filme começa meio estranho confesso que não estava entendendo, mas aos poucos tudo vai se encaixando como um quebra-cabeça. Não temos nenhum protagonista nesse filme, pois o propósito é mostrar a força do coletivo. O filme mostra que lutar contra o desconhecido é algo bem complicado, como por exemplo, é no combate com o Covid-19.

Se você não gosta de filmes com violência, talvez esse filme não seja para você. A narrativa fílmica de Bacurau é usar a violência como representação de toda a desigualdade social, a exploração e o imperialismo que passa pela história do povo sertanejo. Bacurau mostra nos detalhes de uma narrativa exótica, a força de um povo lutando contra o desconhecido.

Valorize o cinema nacional e acompanhe mais uma dica da revista A-Sol!

Luka Oliveira. Estudante de Filosofia, pesquisador de Filosofia e Cinema pelo GECEF. Professor voluntário no Cursinho Comunitário A-Sol.

Thiago Alves, estuda programação e faz parte do A-Sol desde março de 2020.

Caroline Locatelli, apaixonada por livros e cinema, amante do ínfimo ao infinito.