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O falso dilema entre a vacina, a fome e a despolitização da luta
Por Yanka Xavier
Através de um projeto político desigual e propositalmente confuso, a vacina e o direito ao alimento são endereçados conforme cor, gênero e região, como aponta um estudo feito pelo Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP) e que estará disponível em link ao final desse escrito, estima-se que até 61,1 milhões de pessoas estão em situação precária no Brasil em 2021, enfatizando a importância do Auxílio Emergencial para conter o aumento da pobreza e da extrema pobreza durante a pandemia da Covid-19.
Segundo a classe empresarial burguesa e o governo de Bolsonaro, o confinamento em massa para assegurar vidas na pandemia levará o país a uma crise econômica que culminará em uma profunda recessão. Não é isso o que se prova mediante a atual situação de países como China, Cuba, Vietnã que cumpriram com o isolamento social somado a programas de auxílio financeiro ao povo - também não é o que os dados e especialistas nos dizem.
Sem lockdown e com o impacto direto da pandemia em todos os setores da sociedade, o que temos acompanhado são hospitais colapsando, estudantes sem acesso à educação, professores com trabalho precarizado, trabalhadores de diversos setores essenciais morrendo (com aumento considerável em 2021) e boa parte do povo passando fome ao passo que perde entes queridos para o vírus e consequentemente seus empregos, pois muitos precisam estar presente nos cuidados de familiares doentes em casa, visto que já não há leitos para socorrer tanta gente. Neste cenário, o pequeno comércio também sente a crise sanitária e econômica, pois além de diminuir consideravelmente a comercialização dos produtos com a falta da circulação do dinheiro e por consequência, ter que demitir os trabalhadores e trabalhadoras por falta de meios e principalmente de programas de auxílio digno por parte do Estado. Essa é a realidade da metade da população que receberá até quatro parcelas de R$150 a R$375 por mês nesta reedição de 2021 do Auxílio Emergencial, contando com o encarecimento do alimento e do custo de vida.
Até o momento, a pandemia e o projeto político neoliberal e seus representantes em diversos municípios, já levaram mais 400 mil pessoas em todo o país, sendo que somente nos dois últimos meses, entre março e abril, foram 100 mil novas mortes. Estamos longe da imunização por rebanho ou dos 70% que deveriam estar vacinados para que o controle da pandemia fosse possível. Para piorar, estamos sujeitos ao modo de produção e distribuição capitalista das indústrias de insumos farmacêuticos que tem se mostrado animada com a fabricação contínua de medicamentos para novas variantes em circulação. E mesmo que o Instituto Butantan passe a finalmente produzir a vacina, sem os lotes que foram oferecidos e negados em 2020, é provável que a população geral ainda não seja imunizada em sua totalidade este ano.
Nesse cenário caótico, a falta de vacinação para o povo pobre evidencia a desigualdade no acesso, tomando como exemplo a capital de São Paulo, que entre os bairros pobres e ricos tem o índice de imunização com primeira dose na faixa dos 70 anos em 36% no bairro de Pedreira e chega a 91% em Pinheiros, como aponta a reportagem da Folha de São Paulo publicada no último dia 10 deste mês, mas também no mundo, como pronunciou o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus em dezembro de 2020 durante a cúpula virtual da Organização das Nações Unidas (ONU) - enquanto 87% dos vacinados são de países de potência capitalista, nos de capitalismo dependente apenas 0,2% da população foi imunizada.
As decisões por parte do Governo estão longe de serem confusão ou devem ser reduzidas a falta de capacidade técnica para lidar com a crise: trata-se de um projeto político pensado, definido, aparelhado pelo Estado, pelos militares e pela burguesia, e é mais complexo do que parece.
Um dos caminhos utilizados para fomentar esse projeto político, por exemplo, é a despolitização das pautas “não é questão política, é questão técnica e moral” ou a falsa polarização dos debates “temos duas ou nenhuma alternativa contra esse modo sistêmico de reprodução capitalista”, discurso que busca automaticamente alimentar a narrativa de impasse e impotência na população, limitando o raciocínio, a organização e o aprofundamento das pautas.
É verdade que o país vem sofrendo com políticas de austeridade com total aparato do Estado até mesmo depois da redemocratização do país, sempre se adaptando as exigências da burguesia e da conjuntura do mercado, mas não podemos negar que o neoliberalismo tem sido intensificado desde o golpe de 2016 com o governo de Temer através de PECs (Proposta de Emenda Constitucional), reformas e congelamento de gastos públicos. Esse tipo de projeto político elava-se a níveis de estrangulamento total através da austeridade que agora mais do que nunca se instrumentaliza nas decisões do então ministro da economia, junto de todo corpo que compõe a cúpula do governo, escancarando todos os dias as diversas contradições da democracia burguesa e do estado de bem-estar social.
Nesse sentido, o maior interesse desse projeto político é o lucro acima de todas as coisas, afinal, não é contraditório que os bilionários no Brasil e no mundo fiquem mais ricos durante a pandemia enquanto metade da população sofre com a insegurança alimentar e a falta de moradia?
Sendo imposta a nós esse tipo de realidade, quais são as opções diante do projeto político que a todo momento investe em precarizar nossas vidas e dizimar nossos direitos?
Como escrevia Carlos Lamarca, precisamos “Ousar lutar, ousar vencer”.
No debate sobre como se organizar politicamente contra essas e outras injustiças, preparei um texto para a edição de março da Revista A-Sol onde converso com o leitor sobre os possíveis caminhos para construir um enfrentamento coletivo, caminhos esses que foram baseados em alguns escritos filosóficos, políticos e revolucionários que compõe o pensamento socialista e emancipatório de Paulo Freire a Marx, visto sua propriedade em organizar a massa trabalhadora através principalmente da educação e da prática.
Em resumo, revela-se fundamental pensar a prática através da organização coletiva, da conscientização necessária para interpretar a conjuntura e principalmente trabalhar ações a partir da raiz do problema. Não basta ficar remendando as pontas, é preciso entender a existência da estrutura que sustenta esse projeto político e construir a práxis que busque romper com esse modo de produzir e de pensar o mundo em que vivemos. É preciso tomar nosso destino em nossas mãos.
Fontes e indicação de leitura para encorpar a conversa:
Livro: Sintomas Mórbidos da socióloga Sabrina Fernandes publicado em 2019 pela editora Autonomia Literária.
Estudo da Made-Usp disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/ e https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/04/NPE-010-VF.pdf
Matéria do jornal El País: https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-04-17/por-que-falamos-de-70-da-populacao-vacinada-como-uma-cifra-magica-para-acabar-com-a-covid-19.html
Matéria do jornal Brasil de Fato: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/04/oms-ricos-nao-podem-pisotear-os-pobres-na-corrida-por-vacina-para-a-covid