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Camões, do amor ao desconcerto
Por Deborah Garson Cabral
A definição de LÍRICA
Os conceitos de gênero são até hoje estudados sem um consenso sobre suas definições. Entretanto, partindo da concepção aristotélica, dividimos toda a composição literária entre a Épica, a Lírica e a Dramática. Seguindo o pressuposto de Jauss, a obra é produzida pressupondo um gênero, de forma a facilitar a compreensão do receptor sobre seu conteúdo e sua forma.
À parte os dois outros gêneros, nos ateremos hoje à lírica, que remete à composição poética em que se revela a subjetividade, o sentimentalismo, o indivíduo inserido em seu tempo, refletindo sobre o ser no mundo.
Assim, instaura-se a lírica camoniana.
A LÍRICA CAMONIANA
É sabido que Luís de Camões compôs vasta obra em seu tempo, e temos como principal matéria de sua composição Os Lusíadas, poema épico de grande importância para a Literatura de Língua Portuguesa. Entretanto, não menos importante é sua composição lírica, representada pelos sonetos, canções e odes, entre outras formas, compostas pelo poeta.
Camões foi um indivíduo de seu tempo, acordado que se insere como um renascentista e classicista, olhando para o passado e mirando no futuro. Sua composição, notadamente repleta de elementos antitéticos, contraditórios e paradoxais, bebe diretamente da fonte petrarquiana para escrever seus poemas.
Sua composição lírica compreende o total de 327 poemas, sendo 118 redondilhas, 166 sonetos, 10 canções, 7 elegias, 13 odes, 4 oitavas, 1 sextina e 8 éclogas, segundo Costa Pimpão. Outros camonistas dirão que sua composição ultrapassa esse número, contudo, o grande problema da ausência de seus manuscritos dificulta a real contagem, sendo contabilizados alguns poemas que, possivelmente, não foram por ele compostos. Camões também não deixou sua obra lírica preparada para a publicação. Assim, muitas alterações foram feitas a partir do que havia sido deixado.
É a partir do dolce stil nuovo que adota o soneto como sua maior expressão, lapidando o modelo de Petrarca e tornando-o uma composição assimilada pela língua portuguesa. Transitou pela medida velha, escrevendo cantigas provençais, e pela medida nova, elaborando uma série de sonetos por nós repetidos. É Aguiar e Silva que diz que Camões foi “[…] o poeta que mais profunda e belamente exprimiu a agonia e as contradições de uma época.”
TEMÁTICA
Camões revelará, em suas obras, todo o sentimento de uma época ocasionado pela crise religiosa em vigor, bem como pelas transformações trazidas pelo avanço da tecnologia, com o surgimento da imprensa, a criação da bússola e da pólvora, grandes invenções que apresentou o mundo à era moderna, culminando no Renascimento.
Além do resgate do petrarquismo, Camões ultrapassa o mero maneirismo, transcrevendo, pela arte, sua experiência humana. Sua temática se divide entre a amorosa e o desconcerto, respectivamente, a ambiguidade do sentimento amoroso e a angústia do ser no tempo. É possível pensar, ainda, em Camões como o primeiro moderno, o primeiro romântico avant garde, pois demonstra, a partir dessa concepção de indivíduo em conflito, as angústias de seu tempo, o intenso sofrimento amoroso, ao mesmo tempo que revela em sua épica um sentimento de engrandecimento nacionalista, que complementa essa alcunha.
Camões é o poeta dicotômico, aquele que traz em si mesmo a antítese, o deslocamento do ser no mundo, e isso se reflete em sua obra. Não gratuitamente, sua poesia compreende todas as tendências líricas da época, apreendidas em todos os modelos existentes até aquele momento. Além do mais, insere em sua temática a contradição, a angústia, o humor, além de romper, em alguns de seus poemas, com o ideal de beleza vigente, como é possível observar em suas Trovas a uma cativa com que andava de amores na Índia. Trata-se de uma novidade temática, antecedendo mesmo Baudelaire e sua Vênus negra.
De maneira didática, podemos dividir a temática da lírica camoniana entre os poemas amorosos e aqueles que tematizam o desconcerto. É possível, ainda, construir, com base em suas oposições, um quadro que contemple suas características:
O AMOR
A temática amorosa em Camões tem como alicerce o neoplatonismo já visitado por Petrarca na acepção de sua musa, Laura. Ali, o poeta arentino constrói já suas contradições acerca do amor puro e elevado e o desejo que causa culpa e degenera. Camões, ao idealizar sua amada, recorre ao ideal de beleza e à inacessibilidade da realização de seus sentimentos, entretanto, reflete de maneira mais aproximada dessa mulher, a que, apesar da consciência da idealização, “como matéria simples busca a forma”. Assim, ainda que idealizada essa figura feminina absoluta, era ela também desejada e buscada em sua real forma.
A concepção idealizada do amor se refere ao caráter absoluto e perene implementado pelo equilíbrio entre razão e emoção propagados à época. Camões, em busca de imortalizar sua produção, construía uma mulher exemplar, não uma mulher, mas a mulher que serviria de modelo para o Amor em sua forma única. Assim, muito mais que a amada, em seus poemas está presente o amor, o amar, a conceituação do Amor, por fim.
Evidentemente, o amor em Camões tem, também, seu viés paradoxal e contraditório. É esse mesmo amor, que se busca conceituar, que provocará no eu lírico os sentimentos mais controversos e inquietantes, que remetem à mesma angústia petrarquiana. Ainda assim, o amor carnal é apenas contingente do amor espiritual, este perene e transcendental.
Assim, podemos tomar como primeiro poema a ser analisado, a partir da temática amorosa, o soneto
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
A primeira coisa a que recorremos é a referência direta, quase que um plágio, a Petrarca:
Io canterei d’amor sí novamente
ch’al duro fiancho il dí mille sospiri
trarrei per forza, et mille alti desiri
raccenderei ne la gelata mente;
e ’l bel viso vedrei cangiar sovente,
et bagnar gli occhi, et piú pietosi giri
far, come suol che de gli altrui martiri
et del suo error quando non val si pente;
et le rose vermiglie in fra le neve
mover da l’òra, et discovrir l’avorio
che fa di marmo chi da presso ’l guarda;
e tutto quel per che nel viver breve
non rincresco a me stesso, anzi mi glorio
d’esser servato a la stagion piú tarda.
Para além da referência direta contida na imitação do primeiro verso petrarquiano, a temática a que se segue e o que se objetiva no poema também se relaciona com o poema em fiorentino. Mas, deixemos de lado Petrarca e nos atenhamos a Camões. Ao lermos a primeira estrofe, fica clara a ideia de que o Amor, em seu cantar doce, será o concerto do homem de seu tempo. Em oposição dicotômica em sua temática, o amor está em direta oposição ao desconcerto. Contudo, ambos se constroem a partir da mesma matéria, a contradição, a angústia, a dor. Ressalta-se, a partir da definição do amor aqui tentada, a presença do Racionalismo característico do Renascimento, bem como o Neoplatonismo.
Seguindo os versos, na segunda estrofe o poeta revela de que forma esse amor, conteúdo que resgata, fará o ser viver intensamente todas as dores e delícias, as mesmas que o inserem entre os seres que amam e vivem. Em seguida, confirmando a ideia de que menos importa a amada e mais o amor em si, revela que não tratará da descrição da amada, pois que tamanha beleza não seria descritível pela sua pequena habilidade de “engenho e arte”.
Sobre o desconcerto, vale a definição de Saraiva para entendermos sua expressão em Camões:
(…) não correspondência entre os anseios, os valores, as razões e a realidade da vida social e material; problema tanto mais árduo quanto a filosofia platônica assenta sobre o mundo sobre as Idéias e delas faz tudo derivar. Este problema sente-o compenetradamente o Poeta, está no âmago de seu próprio existir e não em simples congeminações sobre a matéria objetiva, como são os tópicos filosóficos ou as convenções sociais. O desconcerto do mundo reside na própria relação entre ele, como pessoa paradigmática, e um destino com que ele se encontra e que, ao mesmo tempo, lhe é opaco.
Em seguida, analisemos um poema que trata da temática do desconcerto:
Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando,
num’hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar um’ hora.
Se me pergunta alguém porque assim ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
Aqui, também, nos remetemos a Petrarca:
In dubbio di mio stato, or piango or canto,
et temo et spero; et in sospiri e ’n rime
sfogo il mio incarco: Amor tutte sue lime
usa sopra ’l mio core, afflicto tanto.
Or fia già mai che quel bel viso santo
renda a quest’occhi le lor luci prime
(lasso, non so che di me stesso estime)?
o li condanni a sempiterno pianto;
et per prender il ciel, debito a lui,
non curi che si sia di loro in terra,
di ch’egli è ‘l sole, et non veggiono altrui?
In tal paura e ’n sí perpetua guerra
vivo ch’i’ non son piú quel che già fui,
qual chi per via dubbiosa teme et erra.
Também, aqui, vemos a influência petrarquiana, ainda na repetição do primeiro verso adaptado e da temática. Aqui, é possível perceber, temos o conteúdo revelado do desconcerto, a contradição provocada, no caso, pela visão da amada, que provoca tantos sentimentos contraditórios. O poema explica, notadamente, qual a sensação que indica o desconcerto, e a causa deste é, também, o mesmo amor que salva.
Para falar especificamente do desconcerto, faz-se mister trazer à baila o poema que revela, para Camões, enquanto homem de seu tempo, o estado das coisas, mas em redondilha:
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.
No poema está claro o que deseja Camões expressar com seu desconcerto. O mundo, esse mesmo que exalta o amor e a devoção, que revela no comportamento social a cisão entre amor e prazer, é o mesmo mundo que premia aquele que cede aos seus males e castiga o que deles foge.
Ainda citando Saraiva:
No sentimento desta contradição, Camões vai muito além dos problemas do amor. Meditando sobre o seu destino, verificava como os prêmios, castigos e condições estão mal repartidos e não obedecem a qualquer norma racional. A riqueza e o mando pertencem não aos mais sábios e virtuosos, mas aos que roubam, assassinam e possuem a mulher do próximo. O que é na realidade a hierarquia social? Um “regimento confuso” resultante de “um antigo abuso”, que dá o mando àqueles que o utilizam para praticar injustiças. (SARAIVA, 1974)
Assim, seu sentimento desconcertado, presente na lírica que critica e questiona seu ser no mundo, resvala no desencanto de Os Lusíadas, que veremos nas próximas aulas.
Camões, o homem moderno, cindido, em processo fragmentário, revela sua identidade contraditória e compreende, enfim, que “é inútil tentar encontrar no mundo uma ordenação racional.” (SARAIVA, 1974)
BIBLIOGRAFIA
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JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
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SARAIVA. A. J. História da Literatura Portuguesa. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1974.
SARAIVA, A. J.; LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2001.