Crônica: O ângulo da bala

Por Priscila Santos

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Não sei bem como passei a existir, também não conheço nada sobre a geração dos que vieram comigo, acredito que o fato de eu ter pensamentos nesse momento é uma coisa anormal, mas talvez seja necessário pra que você veja uma história real de um outro ângulo, o meu ângulo.

Posso dizer que não tenho um gênero, alguns me dão um nome de gênero feminino, outros de gênero masculino, deve haver uma forma certa, um nome técnico para me chamar, mas isso tem pouca importância. Tenho pouco tempo até que me usem, e depois disso, a minha história termina.

Primeiro havia a sala de maquinas, um barulhão enorme, gente pra todo lado andando pra lá e pra cá, cada máquina tinha seu próprio monitor, cada monitor tinha suas luzes, cheios de números e letras em cinza. A luz no ambiente era dura e forte em todas as salas por onde passei.
O próximo passo era o empacotamento, caixas e mais caixas com embalagens de plástico cheias, havia um o cheiro estéril de álcool e metal, e depois veio a escuridão.

A primeira escuridão foi quebrada pela luz do sol, havia vozes, vozes fortes de homens e mulheres, eles estavam todos com o mesmo tipo de roupa azul escuro, talvez não fosse azul, talvez fosse chumbo, cores sem vida e sem graça, diferente dos rostos de quem as vestia. Por dentro das roupas homens e mulheres de todos os tipos, expressões na maioria das vezes sérias, ouso dizer carrancudas, mas também havia riso, havia piadas internas, e,essa parte provavelmente será a que você, leitor, mais vai gostar, eles pareciam irmãos, parceiros, pareciam apenas humanos. Me tiraram da luz do sol e então entrei numa sala com mais luz sintética; Me colocaram sobre uma mesa, as pessoas em seus trajes se sentaram e então houve silencio por alguns instantes até que alguém começou a falar solitariamente, um cumprimento casual respondido pelos demais, e então houve uma torrente de frases e ordens que eu não entendi, mas as pessoas dentro da massa de roupas chumbo que eu via pareciam compreender. Mais alguns minutos e o silencio quebrado apenas pela voz de um, logo se tornaria o som de movimentos rápidos e tensos vindos daqueles que antes pareciam tranquilos, e então, mais uma vez, veio a escuridão.

A segunda escuridão era um lugar diferente, parecia uma prisão, não havia espaço para qualquer movimento ali, se você for claustrofóbico, imagine o pior dos seus pesadelos, haviam outros da minha geração bem perto de mim agora, mas por algum motivo não nos tocávamos, parecia uma roda gigante. Os sons que vinham de fora eram abafados e ainda mais tensos, havia muito balanço, e então entendi, a prisão cilíndrica onde eu estava, era, agora carregada por alguém em roupa cor de chumbo, eu não sabia o motivo, mas acredito que se fosse pra perguntar, você se perguntaria onde isso vai dar.

Os sons abafados do lado de fora se tornaram mais fortes, como se os uniformes chumbo estivessem gritando, a prisão onde eu e os da minha geração estávamos pulava como louca e então tudo parou, como em câmera lenta. O lugar mais apertado onde estávamos começou a girar, eu vi um dos meus ser colocado mais para cima, fora da roda gigante, então um brilho atrás dele e de repente, não havia mais nada, foi quando a roda girou de novo, e a cena anterior se repetiu, e mais uma vez até que um terceiro desapareceu.

Pare a câmera da sua visão agora, deixe ainda mais lento, porque agora é a minha vez.
A prisão me engatou em um cilindro ainda maior, na minha frente havia luz, senti calor atrás de mim, como fogo, e então um impulso em uma velocidade inacreditável me empurrou pra fora. O lugar era apertado e me deixou marcas nas laterais, grandes ranhuras, mas essa, não seria nem de longe a maior marca.

Finalmente consegui chegar à luz, eu sai da prisão, estava voando, o ambiente era pequeno com relação a força e velocidade com que eu sai, havia fumaça mas pude ver as pessoas ali, homens e mulheres vestidos com roupas mais alegres que o triste chumbo de antes. Mas não eram homens e mulheres, eram crianças, deitadas no chão, não havia riso e nem irmandade, havia gritos e fumaça.

Me atiraram em uma direção, eu não tinha controle pra desviar da rota, mas pude ver, uma das crianças estava deitada de bruços, as mãos pequenas sobre a cabeça, provavelmente tentando abafar os gritos de comando misturados aos gritos de medo que eu também ouvia, e então cheguei perto demais, não havia como desacelerar, eu penetrei a roupa, e depois a carne.

Conforme meu corpo invadia aquele outro, eu entendi o que ele sentia, estava amedrontado, como se já tivesse visto o horror desse momento outras vezes, a adrenalina dentro dele não o deixou sentir o momento que o invadi como um parasita mortal, mas eu vi, vi o rosto dos pais dele passar pela memória, os sorrisos e os abraços acolhedores de ambos, vi a memória dele indo a igreja, falando da fé, ouvi as canções que entoava em adoração ao deus em que ele acreditava, vi o choro emocionado ao proferir palavras de adoração para aquele divindade. Eu ouvi as risadas das lembranças da escola, vi a tensão em dias de provas e apresentação de trabalhos, vi os risos e o coração acelerado ao chegar perto de uma garota bonita…

Eu vi o sonho .

O nome da criança é João Pedro, ele queria ser advogado, tinha consciência que não seria fácil, mas também sabia que faria todo o possível pra conseguir, e então, já adulto, ficaria orgulhoso de ter conseguido, deixaria seus pais também orgulhosos por vê-lo vencer toda a adversidade, ninguém poderia tirar isso dele.
Foi então que as lembranças e os sonhos começaram a perder as cores vívidas, tudo agora era cinza, e logo escuro de novo.

Eu estava dentro dele e vi quando o entendimento o atingiu, essa era ultima escuridão, não haveria mais luz pra nenhum de nós dois.

Texto em homenagem a João Pedro, morto por operação policial no Rio de Janeiro, em Maio de 2020.