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Crônica: Quando a coroa cai
Por Priscila Santos e Rodrigo Amorim
“Se os animais tivessem religião, o homem seria o Diabo”
-Francisco Wallas Da Silva
A Cidade era cinza, se estendia por quilômetros de edifícios e ruas igualmente sem cor até chegar no mar. No passado, havia sido celebrada e era motivo de orgulho para seus habitantes, mas agora parecia apenas uma foto velha, em preto e branco, desbotada de seu antigo esplendor. Suas catedrais não inspiravam mais louvor nos devotos, mas sim nojo comedido por suas escadas tomadas de moradores de rua. Naqueles tempos, todos pareciam ter uma opinião de como a Cidade havia chegado naquele estado, mas ninguém sabia ao certo como vocalizá-la aos demais. A Cidade era cinza, assim como seus habitantes.
Em uma antiga loja de eletrônicos, uma televisão velha abandonada no sótão exibia o jornal da noite.
— E agora uma notícia, no mínimo curiosa. Um grupo de macacos roubaram, hoje, amostras de sangue de um paciente com covid-19, os animais atacaram um técnico que estava caminhando com as amostras pelo campus da faculdade de medicina…
A tela foi desligada abruptamente, Marco Aurélio, que se divertia com a notícia olhou para Alouisio com o olhar questionador.
— Porque ainda está chateado, irmão? Eles nem desconfiam do que fizemos, estão tratando como diabrura nossa. — O riso saiu fácil de Marco Aurelio que prosseguiu — Eles são como crianças.
— Foi Humilhante! Já devíamos tê-los dominado há séculos, como eles conseguem ser tão ingênuos ao ponto de acreditarem que são, de fato, a coroa da criação? Não são como crianças, são tolos, pedantes, de pretensão extravagante, chegam a ser risíveis. Eu quem tive que ficar lá, parado em cima de uma árvore, esperando! Esperando uma dessas criaturas ínfimas finalmente me alcançar — Alouisio apontava para a tv agora desligada — e me ver mastigando um tubo desse material fétido criado por eles. Tudo para que a farsa continue. Humilhante!
— Ora irmão, quantas vezes teremos que pedir para você se aquietar? Sabes que, com rompantes como esse, tu ficas cada vez mais parecido com eles.
— Mais respeito, Marco Aurélio, peço-te que tenhas mais respeito para comigo, jamais ouses usar essa comparação descabida. Há de convir comigo que eles são selvagens.
— Mas é claro que sim, meu querido, mas é de conhecimento de toda a espécie…
— Quase toda espécie…
— Ora, pare de me interromper se não gostas que eu o compare a eles. Sim, é de conhecimento de quase toda a espécie residente deste globo, que a selvageria deles se deve à cegueira. Porque os olhos deles foram fechados pela ganância no começo de tudo. A cegueira os torna convencidos de que eles são os únicos capazes de raciocinar de forma inteligível.
— Por isso meu ponto inicial, logo depois que o globo deixou de ser sem forma e vazio, quando todos nós entendemos nossa missão, eles se mostraram incompetentes para a tarefa, e, ao invés de usarmos a chance de bani-los quando eram poucos, os deixamos se multiplicarem, deixamos que trouxessem para o globo toda a série de pestilência. Até quando?
— Apesar de citar o início de tudo, você fala como um infiel irmão. Não se atentou às escrituras? O criador dará sempre uma nova chance para toda criatura feita de sua boca, sabes que fomos formados para ter compaixão, sabes que eles terão chance de se redimir até o último dia, quando nossos salvadores se erguerem do mar…
— Pare! Por favor, pare! Conheço as escrituras de capa a capa, sei bem o que elas dizem, o levantar das grandes feras marítimas para nos dar uma boa vida é um evento que aguardo com todo bom sentimento que o criador me permitiu ter. Mas enquanto este momento não chega, nós os vemos destruírem o globo de todas as formas que conseguimos prever, os vemos corromper as escrituras colocando-se no centro, temos que ver essas atrocidades e continuar agindo como se nós fossemos os irracionais.
Você irmão, por acaso já leu os escritos deles? Eles escreveram e acreditam até hoje que a Grande Irmã Serpente foi quem os fez desobedecer ao Criador, aqueles dois do início deviam ter sido punidos mais rigorosamente por essa blasfêmia.
Por causa daquela primeira mentira sem punição devida, continuaram a mentir, eles acreditam que tem a forma do Criador — Alouisio riu sem humor. — Você entende? Eles acham que são como o Criador. Chamam as feras marinhas que virão no fim de tudo de bestas, macularam as profecias para incitar medo uns nos outros. Eles tiveram o atrevimento de chamar o primeiro sequestro de “O diluvio”, dizendo que um tal de Noé e sua família nos salvaram, eles acham que NOS SALVARAM… tem muitas coisas absurdas nos escritos deles, coisas piores que…
Marco Aurélio estava espantado, conhecia a ânsia que seu camarada tinha por fazer a humanidade pagar por tudo que fizeram contra todos os outros seres viventes no globo, e por tudo que estavam fazendo com a mãe terra. Mas conhecia a ordem do início, que nenhum deles poderia se vingar dos humanos, eles um dia aprenderiam a conviver em harmonia com o resto da criação. Porém, Marco Aurélio se dava conta que de fato não conhecia os textos escritos pelos humanos, e se, se tudo que Alouisio estava falando fosse a verdade? Será que outros sabiam?
— …OS HOMENS TÊM QUE MORRER! — Alouisio praguejava trazendo a atenção do amigo de volta para ele.
— Baixe o tom, Alouisio!
— Desculpe-me irmão, está muito difícil me conter diante dos absurdos que vemos. Eles são descuidados, continuam a adoecer e morrer aos montes como estão fazendo agora, e então temos que nos desdobrar para saber até onde a doença deles irá nos afetar, eu estou exausto.
— Sim… eu, eu o compreendo. Aliados como somos, estava mais do que claro para mim o nível de desgosto com que chegaria aqui com a amostras, você sabe se já temos algum resultado?
Alouisio expirou com força pelas grandes narinas, sabia o que Marco Aurélio estava fazendo. O amigo era um pacifista, assim como todos os outros animais que ao longo dos anos se permitiam ser caçados e extintos. Sentia-se sozinho com os seus sentimentos, como se a palavras não pudessem alcançar a ninguém.
Noite após noite, preso à sua árvore ele se perguntava se havia alguma verdade no que ele mesmo foi ensinado a acreditar, se os humanos não são a coroa da criação como acreditam, será que a própria crença do reino animal era verdadeira? A tristeza se apossava dele todas as noites, não haviam ouvidos em que entrassem seus protestos com relação aos homens, então, talvez tivesse que partir da vida sem poder expressar todos os seus tormentos.
— Aparentemente o vírus não irá nos afetar — respondeu ao amigo que aguardava. — Ainda não sabemos sobre as possíveis variantes, mas até o momento não corremos um risco muito grande pela doença, ou pela histeria dos humanos. A notícia está sendo entregue a todos os irmãos em todos os lugares.
— Perfeito, nosso trabalho está feito — Marco Aurélio ainda pensava nas palavras de Alouisio, será que ele estava certo? Os humanos nunca se arrependeriam? — Vamos esperar que eles não sejam tolos e se protejam dentro de suas caixas de ferro e concreto.
— Não irmão, espero que eles ignorem a pestilência, que continuem andando como se fossem os reis do globo, que continuem se agrupando e transmitindo as mazelas que tem uns para os outros, que eles caiam, e que a mãe terra finalmente nos livre do maior mal que já andou por aqui.
Enquanto saiam da loja de eletrônicos, Marco Aurélio não respondeu ao último desejo de Alouisio, pela primeira vez se calou diante da sentença solitária de morte aos humanos, não o repreendeu de forma alguma, apenas o acompanhou telhado afora em direção a mata. O silencio permaneceu por tempo suficiente para incomodar Alouisio. Já escondidos e longe de qualquer possibilidade das vistas humanas os olhos dos amigos se encontraram ali, no escuro.
— Alouisio, você tem um exemplar das escrituras humanas?
Ano 201.
O topo do grande Ipê amarelo dava uma vista privilegiada da vastidão verde que se estendia abaixo dos dois saguis. Após um longo período de silêncio, o mais jovem pediu que o ancião continuasse a história da libertação.
— Tudo começou de forma desorganizada — disse o macaco mais velho coçando o queixo. Ele voltou a discorrer sobre os tempos em que o Homem imperava sobre o planeta. Falou com entusiasmo sobre os antigos zoológicos para dar ao mais jovem a visão das atrocidades que os animais viviam, e então prosseguiu contando como as crianças começaram a se assustar com a repentina agressividade que os animas começaram a demonstrar contra os seres humanos, no princípio de tudo. Uma risada grave saia pela boca do ancião de tempos em tempos enquanto ele prosseguia.
— Na internet, vídeos de gatos enfurecidos com os pelos arrepiados ressonando contra os donos se multiplicaram. Velhos papagaios domesticados se recusaram a continuar repetindo as frases que decoraram das famílias que viviam. Os sinais eram todos óbvios. Uma grande mudança estava para ocorrer — disse com entusiasmo enquanto exibia sorridente as pequenas presas amarelas.
O sol se avermelhou no horizonte enquanto encerrava mais um dia. Os saguis decidiram, em silencio, partir. Adentraram a escuridão que a floresta abaixo lhes oferecia, e, lenta e habilmente, desceram da árvore. Após um longo salto para um galho firme de uma arvore vizinha, o mais jovem retomou.
— Mas os partidos foram formados logo após o primeiro discurso do irmão Alouisio?
— Sim. Mas houve muita deliberação entre grupos que até então eram rivais. Os gatos, por exemplo, se recusavam a ouvir os demais, estes na verdade nem queriam começar uma organização, queriam que os humanos conhecessem nosso descontentamento de forma rápida e violenta, e também tinham grande desprezo pelos cães. Diziam que não havia sentido deliberar contra os opressores Humanos enquanto se sentavam à mesma mesa que a de outra espécie tão opressora quanto. Os caninos também não ajudavam muito. Insistiam em dizer que os gatos domésticos seriam de pouca valia diante do futuro conflito. “Nós cães possuímos presas, somos fortes e nosso latido é forte. O que um gato pode fazer diante disso? Vomitar uma bola de pelos?”. As discussões eram generalizadas. No fim, foram os ratos que apresentaram o exemplo que a maioria viria a seguir e que serviu como mote para o partido único que se formava.
O sagui mais jovem entoou assim que alcançou a terra lamacenta da floresta: — E disse Ratus Lixelus I “Nós, não-humanos que aqui estamos precisamos fazer um juramento solene. Precisamos jurar deixar para trás todo o ressentimento, toda magoa, toda tristeza que alguma vez tenhamos cometidos entre nós.
— Muito bem pequenino, é revigorante para irmãos mais velhos como eu, ouvir que vocês mais jovens não se esquecem que a união de todos nós foi que nos trouxe liberdade. Vamos encerrar o dia também.
— Conte-me o final, por favor.
— Certo, certo! — Continuou o ancião— Anos depois daquele primeiro diálogo, em pleno solstício de verão, certa tarde, Alouisio estava sob o sol, contemplando o final de sua vida, andava a passos firmes para dentro da universidade de medicina em Meerut, onde, em sua opinião, tudo havia começado. Não conseguia deixar a felicidade de lado. Entrou no auditório e se sentou bem no meio da plateia vazia. Nas paredes do grande salão, havia uma infinidade de colagens dos chamados jornais humanos coletados ao longo dos anos, formavam um verdadeiro mosaico dos relatos do crepúsculo do Homem.
Washington Post: “Avião 747 da Boeing cai em Bethesda e mata todos os passageiros. Causas do acidente ainda estão sendo averiguadas, mas acredita-se que o acidente tenha sido causado por bando de pássaros que viajavam pelas proximidades. A análise da caixa preta revelará…”
O Diário de São Paulo 13/08/20xx: “Acidente grave na Marginal Pinheiros. Caminhão de combustível tombou no meio da pista após manobra do motorista para desviar de capivara no caminho. Não houveram feridos, mas o transito ficou parado por horas…”
Página do diário de Wilhem Krueger: “A medida que nós vamos desaparecendo, os animais se sentem mais à vontade para ocupar o que agora sobrou de Berlin. É mais fácil caça-los assim, entretanto, tenho medo de sair e me expor ao vírus. Que escolha maldita. Morrer de fome ou perecer cuspindo sangue de barriga cheia?”
O macaco gostava de ficar ali, contemplando todos aqueles papéis colados, aquelas palavras também sumiriam assim como a humanidade, e isso alegrava muito o revolucionário. Fechou os olhos e sorriu, haviam conseguido, a real missão que agora sabia ser a verdade em seu íntimo. Juntos, unidos como uma verdadeira irmandade, os irmãos de terra, de ar, e de água exterminaram a humanidade, a terra estava livre de sua maior malignidade, estava finalmente curada.
Enquanto os dois animais adentravam ainda mais a escuridão da floresta, o mais velho pisou em uma folha de jornal suja de terra e amarelada de tempo, as palavras quase totalmente apagadas. Se alguém naquele lugar ainda soubesse identificar o que estava escrito na manchete, leria: “Avanço do novo H6N2 preocupa especialistas. 6709 mortes somente no Brasil”.
Texto escrito por Priscila Santos e Rodrigo Amorim, baseia-se na seguinte matéria:
Macacos atacam laboratório e roubam sangue infectado com Covid-19 na Índia
Priscila Santos. Uma viciada em sorrisos, metida a escritora, cantora, fotografa, marketeira… Xereta, impaciente e ciumenta. Preta orgulhosa. Crespa Feliz!
Rodrigo Amorim. Surtado profissional, cinéfilo, e ocasionalmente lúcido.