7 minutos para leitura
Direito e Justiça, uma relação histórica em Alysson Mascaro
Por José Ricardo Satilio da Silva
Desde há muito que se discute um conceito unívoco para justiça, no entanto em cada tempo histórico houve um conceito específico para esse desejo mais pueril, genuíno da humanidade, o desejo por justiça. Desta maneira, há de se pensar que historicamente a justiça apresenta-se sob a aparência de um amontoado difuso, esparso e sem sentido de acontecimento e formulações que a compõe.
Entretanto, ao examinarmos os modos de produção que em todos os tempos históricos surgiram e ergueram formas relacionais, isto é, formas sociais de mediação das relações no seio da sociabilidade, veremos que tais modos produtivos também criaram o seu próprio conceito acerca da justiça. Neste sentido, o Prof. Alysson Mascaro propõe que ao analisarmos os três grandes modos de produção apontados pelo pensamento ocidental, quais sejam, escravista antigo, feudal e capitalista, veremos a diferença que se estabelece em cada um deles.
De tal sorte que aquele teve por leitura de justiça o estabelecimento do poder, da força, uma vez que por meio da guerra um povo dominava o outro e, assim, escravizava-o. Aí, estabelecia-se que era justo a subjugação de um povo por outro através da força, do mando bruto. Quem se dignou a falar contra a ordem posta na antiguidade teve um destino não muito diferente dos que assim procedem na contemporaneidade, uma vez que Sócrates, Platão e Aristóteles, este último de maneira menos direta, falaram contra a justiça baseada na escravidão. O primeiro foi morto ao ter de tomar cicuta após julgamento para lá de contraditório (nada que não nos seja familiar), esse foi exilado e preso e o último mandado ao degredo. Na atualidade, as perseguições à Lula, a morte de Marielle demonstra -nos que, talvez, não se tenha tanta mudança.
Já na idade média, a dominação deixa de lado a força bruta e passa a utilizar uma relação senhorial. Isto é, uma relação lastreada pela vontade divina, a qual designaria quem mandava e quem obedecia, ou seja, quem era senhor, bem como, servo. Aqui, a teologia ganha uma proeminência dado que a presença do deus cristão determinava a forma de relação social. Tal pensamento foi esteio para o estabelecimento, na idade moderna, das, chamadas, monarquias absolutistas. Assim, se o monarca manda, todos devem obedecê-lo , pois “Deus” assim o escolheu. Vê-se um domínio que tem por base não mais a força bruta, mas sim um caráter muito mais ideológico que compõe o imaginário social.
Se na antiguidade, a força é quem ditava a relação social, e no feudalismo era a tradição, na contemporaneidade, isto é, no capitalismo, a forma social que garante, a baliza estrutural do capitalismo, o esteio da sociabilidade é a subjetividade jurídica, é o direito. Tal forma tem por escopo os ideais abstratos da burguesia de liberdade e igualdade, tanto assim que coloca todos em igualdade formal - ainda que materialmente assim não seja- para viabilizar a troca de equivalentes.
No entanto, o pano de fundo do capital e que a forma jurídica visa proteger é a propriedade privada, uma vez que a igualdade entre os desiguais é uma contradição em termos, bem como a liberdade é apenas para trocar, ou seja, no momento da troca por intermédio contratual estabelece-se a ambas.
Deste modo, percebe-se como cada tempo teve e tem o seu conceito próprio de justiça. E, no capitalismo, justiça é o cumprimento dos contratos, os quais garantem segurança jurídica esta, por sua vez, garante a propriedade privada, assim protege-se a ordem capitalista, a exploração por meio do contrato de trabalho.
Mascaro, então, propõe que o direito é a justiça, na medida em que este, o direito, é uma forma social do capital (derivado de sua irmã gêmea mercadoria) e com ele está umbilicalmente ligado, portanto quem tem o direito por justo, tem, também, o capitalismo, de tal modo que justiça é uns expropriarem os meios de produção e explorarem os que não os tem, é o cumprimento estrito dos contratos, enfim é vacina ser mercadoria garantida por contrato em meio a pandemia que, só no Brasil, já ceifou mais de 500 mil vidas. Ou seja, como diria o velho Barbas -Karl Marx- o valor é mais importante do que a utilidade, isto é, milhares de pessoas morrendo e, ainda assim, a vacina é adquirida na troca contratual de equivalentes, ou seja, os países com centralidade no capitalismo se imunizam primeiro e os demais veem seus povos serem dizimados. É apenas um dos tantos exemplos contemporâneos da nossa de justiça no capitalismo burguês. Uma justiça que se importa com as formalidades contratuais mais do que com as necessidades vitais humanas, importa-se com a valorização do valor e o capital em detrimento da vida.
Logo, se para alguém o capitalismo em meio suas contradições e antagonismos é justo, assim também o será sua forma nodal, seu garante último da produção e reprodução, o direito uma forma do capital que ao modo do Estado é derivado da forma mercantil; portanto não se pode dizer que o capitalismo é justo e o direito é injusto e vice e versa, uma vez que ambos são anelados e simbióticos. Ou temos essa organização social exploratória, desumana e atroz na conta da injustiça a qual só será combatida com o estabelecimento de um novo modelo baseado na solidariedade e no comum, ou a aceitamos como justa apesar de suas desigualdades e contradições.
Mascaro, ainda, nos ensina que ambas as formas se constituem e dão sustentação uma a outra, isto é, há uma conformação das formas sociais no Capitalismo. De tal sorte que o direito é a forma jurídica do capital e por meio da qual se garante a troca de equivalentes, a exploração assalariada do trabalho, tanto assim que seu conteúdo não se dá pela norma posta (a forma quantitativa), mas sim pela sua forma de subjetividade jurídica (forma qualitativa) materializada nos contratos. Portanto, o direito não é justo e a ordem burguesa também não o é, dada a ligação inextrincável existente, desse modo em sendo aquele forma social desta, jamais será justo. Como disse Platão, “não há homem justo numa sociedade injusta.”
Por fim, Mascaro, preconiza que o jurista não irá modificar a sociedade por meio do direito, tampouco pelo seu afazer jurídico, mesmo que reformista, pois a ponderação de princípios uma hora acaba dominada pelo capitalismo e o que prevalece é a propriedade privada e o capital. Para o insigne professor, o jurista mudará o mundo se este entender seu papel na transformação social, pois o “jurista médio, frio e tecnicista, só tem olhos às normas jurídicas estatais. O grande jurista tem olhos voltados a esperança de um mundo justo”. (Mascaro, 2019, p. 188)
Ou seja, de um mundo que ainda não existiu, mas que está por vir. O mundo no qual se ceifarão as injustiças, em que não mais um punhado deterá os meios de produção em detrimento da massa de explorados, os quais vivem para o trabalho em condições miseráveis, indignas e desumanas. Um mundo em que justiça será todos sentarem à mesma mesa para cearem juntos a mesma comida, isto é, comer no mesmo prato, compartilhar o mesmo pão. E este será o mundo comunista o qual se alcançará por intermédio do socialismo, da luta e da transformação radical da sociedade e não por meio do direito e sua tez reformista.
Leiam Mascaro!!!
Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de direito da Universidade São Paulo ( USP), o tradicional Largo do São Francisco. Doutor e Livre- Docente em filosofia do direito e Teoria Geral do Direito pela USP, onde se graduou e desenvolveu sua carreira acadêmica.
Autor de Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do direito, publicados pela GEN Atlas, publicou também Estado e a forma politica, Crise e Golpe e Crise e Pandemia, todos pela Boitempo editora entre outras obras.
Fundador do grupo de pesquisa critica do direito e da subjetividade jurídica: https://criticadodireito.com
Nas redes: https://youtube.com/user/SNSalysson