Entrevista| Iniciativas que ocupam o vácuo de investimento no esporte na cidade de Guarulhos

Por Walter Bolitto

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Foto: Renato Queiroz (via página oficial do Havana FC no instagram).

Anos atrás, com os bons resultados nas Copas do Mundo, o Brasil era conhecido como a terra do futebol, mas nem sempre foi assim, o jogo que foi símbolo da Inglaterra, veio pro Brasil para ser praticado pelos filhos dos ricos, e aos poucos foi popularizado nas ruas, quintais e quadras de todos os países pelos filhos da classe trabalhadora, transformando a percepção sobre o esporte e possibilitando essa paixão nacional.

As polêmicas relacionadas à CBF, os empresários lutando contra direitos sociais usando o uniforme da seleção e o desempenho recente do governo brasileiro na política em relação a desmontes de setores de esporte, lazer e cultura, diminuiu o brilho no olhar do torcedor brasileiro.

Independente disso, o futebol continua a habitar o imaginário da população, e passeando à deriva pela cidade, podemos ver bolas e traves improvisadas nos centros urbanos e nas periferias, parte disso decorre do amor pelo esporte mas também é de responsabilidade pública manter esses ainda poucos espaços culturais disponíveis para que ocupem também os filhos e as filhas da classe trabalhadora.

Na cidade de Guarulhos, notamos um governo que comemora a vitória de atletas em grandes eventos, ao mesmo tempo que na prática não dispõe atenção nos espaços esportivos e públicos, já que pouco investe nos espaços culturais e lazer, principalmente nas periferias, e dessa forma, iniciativas desenvolvidas pela militância da cidade buscam ocupar esse vácuo de planejamento e desenvolvimento na área do esporte.

Marcel Agea, professor da rede de ensino municipal e estadual de São Paulo, colabora com a transformação da realidade da juventude de Guarulhos através da educação e do esporte, organiza com outros militantes da cidade o Cursinho pré-vestibular Dona Fernanda e o Havana Futebol Clube.

Entrevistamos Marcel para falar um pouco sobre esse projeto tão importante na cidade e como ele se insere no cenário político.

Para você, qual a relação entre o futebol e política? Como isso impacta a sociedade e a classe trabalhadora?

Essa é uma pergunta que fazemos principalmente em períodos de crises políticas e democráticas, algo que temos constantemente no Brasil, o futebol é um esporte muito presente na sociedade brasileira se confundindo e fazendo parte da construção de nossa sociedade. Ao analisarmos a história do futebol veremos momentos de forte relação política e social no mundo todo, no Brasil não é nada diferente ainda mais por ser um esporte que tem uma marca de orgulho e esperança para nosso povo, essa paixão não seria desprezada pelas instituições e partidos políticos.

O que observamos no futebol brasileiro, diferente de outros países, é a participação política de cima para baixo, como na cidadania, uma construção descendente. O que seria isso?

Sempre procuro frisar em meus comentários que o futebol brasileiro é um retrato da formação social de nosso país, dessa forma quando falamos de política dentro do universo futebolístico, teremos uma camada despolitizada e pouco interessada nas relações de poder (jogadores e comissão técnica) e outra (dirigentes, investidores e empresários) que se aproveita dessa despolitização impondo suas vontades, cedendo privilégios com interesses pessoais, caracterizado principalmente por um processo ditatorial e de manutenção do poder e dependência.

Poucos são os atletas no futebol brasileiro que se pronunciam politicamente ou que expressam suas escolhas ideológicas e políticas, e quando o fazem sofrem sanções e críticas dos clubes e até mesmo da CBF, deixando claro que não há interesse que os atletas e comissão técnica expressem seus pontos de vistas da política.

A recente história republicana do Brasil caminha junto com a chegada e afirmação do futebol, principalmente como orgulho e afirmação de um povo. A exatos 132 anos tivemos e proclamação da república e cinco anos após 1894 a chegada da primeira bola e uniformes de futebol trazida por Charles Miller, é importante salientar também que a classe trabalhadora esteve presente desde o início do futebol em terras tupiniquins, tanto é que o primeiro jogo foi realizado entre funcionários da Companhia de Gás de São Paulo (Gaz Company) e da Companhia Ferroviária de São Paulo (Raiway Company), nesse percurso vemos também a popularização desse esporte, principalmente após a década de 30 com a excelente participação da seleção brasileira na copa de 1938 onde o bom desempenho foi ouvido pelas ondas do rádio, paralelo a esse evento tivemos a ascensão de Getúlio Vargas um político populista que não hesitou em usar a seleção brasileira para melhorar sua imagem nas camadas mais populares, passando a usar o futebol como instrumento de propaganda e controle ideológico, de forma semelhante ao que ocorria na Itália fascista.

O futebol no Brasil tem uma participação incrível em momentos diversos, se misturando com a política, religião, cultura, quando vemos a imprensa ou mesmo dirigentes anularem essa história por claros interesses econômicos e de manutenção do “status quo” fico extremamente triste, principalmente por ter vivido nos gramados e fora deles como político e sociólogo.

Durante a ditadura militar tivemos muitas influencias políticas que se traduziram na queda do Técnico João Saldanha meses antes da Copa de 1970, Saldanha afirmou por vários momentos ser contra o regime ditatorial confrontando em alguns o Próprio General Médici, como todo regime ditador a queda de João Saldanha foi abafada como algo da própria vontade do treinador e em seu lugar assumiu Zagalo, um puxa saco da ditadura e aproveitador, com a queda de Saldanha o exército dominou a comissão técnica canarinho, muitos dizem que os jogadores pouco respeitavam Zagalo, no meio esportivo se fala que os jogadores se reuniam no túnel do jogo e assertavam suas posições, o resultado todos sabem o Brasil Campeão como uma seleção irrepreensível, a euforia da conquista também serviu de distração das diversas denúncias de desaparecimentos, torturas e pouca liberdade de expressão que ocorriam no país.

Uma década depois o futebol deu uma resposta política e democrática ao movimento ditatorial, estou falando da Democracia Corinthiana e do movimento das Diretas Já, encabeçado principalmente por jogadores como Sócrates, Casa Grande, Wladimir e Zenon, a ideia era demonstrar que um processo democrático seria o ideal não só no futebol, mas também para a nação, o Corinthians foi um exemplo de como a política e futebol andam juntos e pode representar um movimento de mudança e consciência de direitos.

Infelizmente no futebol brasileiro atual estamos muito carentes de atletas como Sócrates Brasileiro, são poucos que conseguem ter alguma consciência política e se fazer efetivamente a expressão de um processo de cidadania e direitos, cito aqui o Juninho Pernambucano e o Raí, ambos já aposentado, porém, atuam como dirigentes de clubes e se posicionam de forma lucida e racional.

O posicionamento político dos jogadores em entrevistas e formas de convivência social, são levadas como exemplos e são seguidos como modelo por varias crianças e até mesmo adultos, influenciando e impactando de forma negativa e positiva, um jogador que abusa sexualmente de uma mulher que não tem plena consciência de seus atos e faz isso em grupo pode representar um grande prejuízo para forma como entendemos os direitos e a igualdade entre os gêneros, um torcida que chama o goleiro adversário de “bixa” não acrescenta em nada para uma sociedade igualitária e menos violenta, um atleta que sonega impostos não favorece uma imagem de honestidade e assim teremos vários exemplos que demostram como o futebol pode impactar uma sociedade.

Em relação a classe trabalhadora, temos muita influência, posso citar aqui duas muito importante, porém que nos causa reflexões:

1º relação - Lazer: para os homens o futebol representa o lazer, a brincadeira, a confraternização do final de semana, para as mulheres representa a solidão, o trabalho em dobro com os filhos e o “saco” em ter que aturar um bêbado violento. O futebol carrega ainda a imagem de um esporte machista e exclusivo dos homens onde as mulheres não se encaixam, dessa forma para os homens o futebol tem um caráter de lazer e para mulheres um problema a ser resolvido. Essa é uma mudança que o Havana/OcupaFut se preocupa, quando falamos que é mais que futebol estamos olhando para essas questões de mudança e desconstrução de uma sociedade Machista e isso pode passar pelo futebol sim.

2ª Relação - Consciência de Classe: o futebol profissional no Brasil tem aproximadamente 90 mil atletas, sendo que 90% desses atletas tem vencimento abaixo de 2 salários mínimos e 55% recebe 1 salario mínimo, apenas 10% recebem seus vencimentos acima de R$ 2.200 e conseguem contratos anuais, a maioria dos jogadores que compõem o cenário futebolístico brasileiro não conseguem contratos anuais sendo na grande quantidade acertos com contratos de trabalho provisório sem carteira assinada e sem nenhum direito trabalhista, a maioria param suas carreiras sem fundo de garantia e sem pagar um tostão de INSS, não tiveram condições de estudar e ter uma profissão, ao se aposentarem do futebol buscam empregos e bicos provisórios, passando por um longo processo de desemprego e adaptação social, nesse bojo temos depressão, alcoolismo, drogadição e a degradação do trabalhador. Por que falei sobre tudo isso, para explicar que na outra ponta, ou seja, cerca de 5% desses atletas estão em grandes clubes do Futebol Brasileiro com contratos milionários sem ter a mínima preocupação com o que se passa nas divisões menores onde estão incluídos seus parceiros e parceiras de Classe trabalhadora, a percepção de Classe no futebol brasileiro é de uma irresponsabilidade absurda. Em 2017 tivemos um grande exemplo desse tipo de consciência trabalhadora por parte do futebol Argentino, os clubes da primeira divisão se recusaram em entrar em campo enquanto os times da 2º divisão não recebessem seus salários. Infelizmente estamos longe dessas atitudes por parte de nossa elite futebolística.

Você poderia contar um pouco sobre a história do Havana Futebol Clube e sua importância na cidade de Guarulhos?

O Havana surgiu de uma conversa entre eu e o Léo em 2019 quando o convidei para dar aula no Cursinho Dona Fernanda, já nos conhecíamos do futebol, na verdade o Léo e a torcida do Guarulhos me xingaram muito quando fui técnico do Guarulhos (kkkk), essa é uma outra história…

Em uma de nossas conversas surgiu a ideia de montar um time de futebol progressista (de esquerda), que pudesse levar uma mensagem de igualdade e de consciência cidadã, no primeiro momento pensávamos em um time de várzea, porém, como futebol alternativo e inclusivo não podíamos iniciar algo no futebol se não fosse pelo futebol feminino, a segunda parte foi pensar para quem seria, dai a ideia de atuar nas ocupações, levar nessas localidades algo que pudesse contribuir para a dignidade e cidadania, pensamos no futebol como atividade física, lazer e ferramenta de inclusão social para um povo que carece já de um direito fundamental que é o da moradia.

Dois mil e vinte chegou e junto a pandemia, isso trouxe um certo atraso em nossas ações práticas, porém, não ficamos parados e passamos a fomentar a ideia nas mídias sociais e visitar algumas ocupações em Guarulhos e São Paulo, conversamos com alguns militantes do MTST para compreender como essas atividades poderiam ser útil no processo de ocupação e garantias de direitos do movimento, nesse período juntamos os colegas e entusiastas da ideia, organizamos o estatuto e passamos a vender camisas e suvenires para juntar uma grana para ter uniformes e colocar o time em campo, em maio de 2021 pensei na possibilidade de iniciarmos o Projeto OcupaFut futebol feminino na comunidade do Bela Vista, mais especificamente na E.E Cantídio Sampaio, tivemos uma conversa com o Diretor Marcelo, ele gostou muito da ideia e autorizou o uso da quadra, só que naquele momento a pratica esportiva na quadra ainda estava proibida pelo Governo, no CEU Bonsucesso tivemos o convite de realizar a atividade por meio do projeto de voluntariado da prefeitura de Guarulhos, seria uma forma de levarmos o futebol feminino para uma região muito carente de projetos esportivos.

Levamos nossa proposta para ambas as entidades (E.E Cantidio Sampaio e CEU Bonsucesso) as duas gostaram muito da ideia, em 03 de agosto de 2021 iniciamos o Projeto OcupaFut no Bela Vista, no primeiro treino tínhamos 10 alunas, hoje temos 28 alunas entre 13 e 17 anos, no CEU Bonsucesso o inicio foi dia 25 de agosto com 1 aluno, hoje temos 30 alunas de 11 a 30 anos, ou seja em menos de 3 meses triplicamos o numero de alunas nos dois núcleos, hoje nossa preocupação é reestruturar nossas ações e trazer mais pessoas que somem com a causa e assim ampliarmos os dias e locais para a pratica do futebol feminino em Guarulhos.

Qual sua expectativa pra política do próximo período e onde o futebol e a classe trabalhadora se encaixam nisso?

Minha expectativa é que haja mudança nas três instâncias (Federal, Estadual e Municipal), de preferência com partidos de Esquerda.

Do futebol brasileiro não tenho muita esperança nesse momento que possa influenciar de forma racional para uma alternância de poder, ao menos que Sócrates e João Saldanha ressuscite… (risos).

A classe trabalhadora sim deve ter protagonismo nessa mudança, haja visto a quantidade de direitos que foram retirados do trabalhador nesses últimos 5 anos, principalmente desde a saída (UM GOLPE) de Dilma Rousselff. Aqui em Guarulhos temos um exemplo do papel e da força do trabalhador através da Proguaru, onde a organização e atuação dos funcionários através das mobilizações e manifestações fizeram essa luta ser ecoada aos 4 cantos do Brasil, se tornando hoje um movimento maior que a própria história de cada trabalhador desta empresa, mas um movimento de todo trabalhador brasileiro.

Queria agradecer ao A-Sol pela oportunidade de falar de futebol, política e sociedade.

Hasta lá victória siempre! Havana!

Um beijão à todes!