Era só mais um Silva: um retrato do funk nas periferias do Capital

Por Yanka Xavier

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São vários os elementos desenvolvidos pelo povo negro que tocam a sociedade de diversas maneiras e que contribui fundamentalmente quando se trata da construção da identidade das pessoas, principalmente enquanto ao pertencimento que se manifesta em determinado espaço no território do Capital considerando suas camadas e complexidades internas.

Como o objetivo desse texto não é uma análise fecunda das estruturas que sustentam essa divisão social, vamos focar na questão das manifestações dos elementos como o funk carioca, e a criminalização dessa cultura na luta pelo direito ao lugar e não somente como uma canalização passiva dos problemas sociais.

Uma breve história do funk no Brasil

Um ponta pé inicial para essa conversa é reconhecer que os elementos culturais são vivos e constantes e não necessariamente se desenvolvem enquanto movimentos de resistência politizados, uma vez que estão sujeitos a influências e ataques diretos num contexto ideológico do capital, isto porque acompanha as adaptações do espaço e tempo para atender demandas históricas em seu momento comtemporâneo. Na lógica do capital, por exemplo, o mercado tende a manobrar inúmeras pautas as relativizando à mercadoria e contando com o total apoio dos monopólios midiáticos e empresariais para este feito.

Partindo disso, quando se trata do funk carioca, a linha histórica do gênero nos remete ao miami bass e ao freestyle, que tem sua gênese no Hip hop, movimento que surge em meados dos anos 1970 nos EUA, para reivindicar o espaço e manifestar a arte e o pensamento de diversos guetos que sofriam com a racialidade imposta no país. Aqui no Brasil, o funk carioca nasce como forte expressão apropriada à realidade nacional em rimas e melodias eletrônicas nas favelas no final dos anos 1980, quando ganha às ruas a céu aberto abordando temas como a violência policial, a pobreza e a união periférica.

Diversos espaços abandonados ou até mesmo alugados e emprestados, serviam aos primeiros bailes funks no Rio de Janeiro, isto quando o poder público local não inventava de cassar alvarás através das narrativas criminalizadoras, ou quando linhas de ônibus, por exemplo, eram proibidas até certo horário de passar pelos endereços próximos aos bailes. Outra situação eram as constantes brigas entre grupos rivais que ganhavam notoriedade na mídia pautadas em racismo e sensacionalismo.

Se tratando do funk carioca, podemos constatar que ao longo das décadas sofreu inúmeras influências, o que levou a criação de subgêneros como proibidão, ostentação, consciente e outros.

Diferente do que nos leva crer o senso comum, tem gosto e expressão para tudo dentro do funk, embora o mercado se aproprie de padrões específicos para comercializar e lucrar com o gênero.

Analisando com mais atenção o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, percebemos que é quando diversas letras são escritas e cantadas pedindo a paz na periferia não só contra conflitos internos, mas principalmente contra a violência sistêmica policial . Essas letras ficariam conhecidas e eternizadas em todo o Brasil nas vozes de Cidinho e Doca com o Rap das Armas, ou o Rap da Felicidade, ou de MC Galo com o Rap da Rocinha e outras tantas inspirações que atenderiam à criatividade e os desabafos da classe que sempre sofreu maior impacto na escala do desenvolvimento desigual.

Rap do Silva

É neste cenário que Bob Rum compõe o Rap do Silva por volta de 1995, e mesmo não narrando a vida de alguém especificamente, faz um perfeito retrato da vida das pessoas nas periferias das capitais do país. Em trechos como:

Era trabalhador, pegava o trem lotado
Tinha boa vizinhança, era considerado
E todo mundo dizia que era um cara maneiro
Outros o criticavam porque ele era funkeiro
O funk não é modismo, é uma necessidade
É pra calar os gemidos que existem nessa cidade

o MC traça o caminho de muitas pessoas que vivem inseridas em um sistema carcerário a céu aberto, considerando as diversas limitações de liberdade que estão sendo impostas. Em dado momento da música, o rap considera a paz como um meio de união entre as favelas, uma pausa para revigorar a identidade das pessoas que como Silva, podem ser pegas a qualquer momento pela violência e morte iminente, como no caso da recente chacina no Jacarezinho, outro exemplo do padrão de extermínio do povo negro pelo Estado, pela polícia e pela indiferença civil.

Dentre as várias chacinas ao longo da história do Rio de Janeiro e outras diversas favelas e regiões metropolitanas, podemos citar o da Baixada, Vigário Geral, Candelária, Maré, Borel, Alemão, Nova Brasília, Paraisópolis, Vermelhão e tantos outros. Frisando nas mais recentes que aconteceram em bailes funks como em Paraisópolis (2019) em São Paulo e no Vermelhão (2018) em Guarulhos. O denominador comum é ser negro e periférico, assim como evidenciado mesmo que nas entrelinhas na letra de Bob Rum.

Mas, naquela triste esquina, um sujeito apareceu
Com a cara amarrada, suando, estava um breu
Carregava um ferro em uma de suas mãos
Apertou o gatilho, sem dar qualquer explicação
E o pobre do nosso amigo, que foi pro baile curtir
Hoje, com sua família, ele não irá dormir

Pela raíz do problema

A omissão e o racismo do Estado soma-se a indiferença da sociedade civil em relação ao genocídio do povo negro, e se esconde atrás de narrativas de punitivistas em relação aos crimes e as consequências do projeto político de extermínio que é decidido em jantares luxuosos com a fiel participação da classe burguesa e com o fiel retorno midiático sempre de prontidão para isolar o problema de toda a estrutura que atravessa o dia a dia do Silva no Brasil.

Em contraste na conjuntura, o número de movimentos e coletivos organizados aumentam aderindo de forma orgânica e não somente mercadológica, a ideia de que a questão racial é parte da estrutura difundida pela burguesia no capital. Isso sugere que há uma centralização e radicalização do pensamento em relação a superação do racismo no Brasil por vias antirracistas, mas que ainda temos muito, muito trabalho pela frente.

Nos recentes atos em São Paulo e Rio de Janeiro, as placas eram de palavras de ordem a nível nacional com o viés de uma ação coletiva e um horizonte revolucionário. Para além dos gritos de guerra presentes em todos os atos, o clima era de necessidade de organização combativa, revolucionária e o desejo de punição àqueles que feriram o povo.