O funk e a chance de sonhar

Por Rebeca Assis

Featured image

não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”

Início esse escrito com essa frase de Paulo Freire que afirma que não existe hierarquização de conhecimentos, ou pelo menos, não deveria existir. Mas sabemos que desde que o Brasil é Brasil há uma perseguição e repressão à alguns conhecimentos populares, mais especificamente aos conhecimentos que não são eurocêntricos, como por exemplo, os que surgiram das matrizes africanas e indígenas, ou ainda, os que surgem das camadas pobres da sociedade discutiremos aqui o funk: uma expressão que vem da comunidade.

Ainda que muitos ignorem, nas periferias constatamos uma efervescência cultural protagonizada pela juventude. Mas antes de chegarmos ao ponto em que discutimos essa cultura é necessário pontuarmos qual é a juventude que está na periferia, afinal, ao falarmos de juventude não estamos falando de um grupo homogêneo. Pensar os jovens no Brasil implica levar em conta as enormes disparidades socioculturais existentes e os diferentes contextos nos quais vêm se construindo como sujeitos. Essa diversidade se acentua no contexto de uma crise pela qual passa a sociedade brasileira, com reflexos nas instituições tradicionalmente responsáveis pela socialização, como o trabalho e a escola.

Pois bem, vamos aqui caracterizar essa juventude como jovens que vivenciam formas frágeis e insuficientes de inclusão num contexto de uma desigualdade que implica o esgotamento das possibilidades de mobilidade social para a maioria da população. Nesse contexto, a pobreza mudou de forma, de âmbito e de consequências. Se, para as gerações anteriores, estava posta, mesmo que remota, a perspectiva de mobilidade por meio da escola e/ou do trabalho, para os jovens de hoje essa alternativa não mais se apresenta, já que no Brasil as taxas de desemprego só crescem e a educação tem sido constantemente atacada. É evidente que esse quadro interfere diretamente na forma como os jovens se constroem socialmente. Colocando essa juventude cada dia mais longe dos seus sonhos.

Voltando ao ponto da cultura, tendo em vista de qual juventude estamos falando. Indo contra a maré da imagem socialmente criada a respeito dos jovens pobres, quase sempre associados à violência e à marginalidade, eles também se colocam como produtores culturais. Entre eles, a música é o produto cultural mais consumido e em torno dela criam seus grupos musicais de diversos estilos, mas tendo o funk como principal produto e produção. Nesses grupos estabelecem trocas, experimentam, divertem-se, produzem e voltam a sonhar.

O funk é uma realidade. Uma realidade concreta em todas as periferias. Suas letras abordam um conteúdo rico (e incômodo aos ouvidos de muitos) que servem como ferramenta para que se compreenda um pouco mais da realidade periférica: afeto, drogas, sexo, mazelas sociais, racismo, estética, machismo, LGBTfobia, consumo, trabalho, etc.

Como chave motora da sociedade, a escola não pode passar por fora desse escrito. A escola muitas vezes tem se apresentado como ferramenta de repressão, a grade curricular não é pensada ao acaso, é fruto de uma seleção de saberes elitizados e eurocêntricos.

Sendo o funk uma realidade da periferia, a escola, em seu dever de ser um instrumento de produção e disseminação do conhecimento, deve se enxergar como um espaço aberto, plural, comunitário, deve se colocar dentro da periferia como parte dela, e não como uma ilha isolada. Olhar ao seu redor e não somente para dentro de si mesma. Devemos construir uma escola à serviço da comunidade e não o contrário. Sabemos que essa postura de ignorar o funk enquanto realidade não tem gerado bons frutos. A juventude tem morrido à custa da repressão que se faz à suas formas de cultura e lazer. É importante entender que antes da existência da escola e ainda que a estrutura física da escola caia, o conhecimento continuará sendo produzido e disseminado através das culturas populares.

Encerro esse escrito ainda com muitas coisas para dizer, mas desejando que a sociedade, e dentro dessa a escola, aprenda a rever seus conceitos prévios, respeitar a bagagem e trajetória dos jovens estudantes funkeiros, e entender esse convívio como forma de construir e praticar a cidadania, verdadeiramente. E já que iniciei com Paulo Freire, deixo aqui mais uma citação de seus escritos para concluir:

se não posso estimular sonhos impossíveis, não devo negar o direito de sonhar com quem sonha”