Nós, a pandemia e a metrópole

Por Walter Bolitto

Featured image

Apesar de grupos políticos avançarem com políticas urbanas excludentes para boa parte da população, em diversos casos estes ataques são imperceptíveis. Os principais motivos que levam a esta discrição é que muitas vezes se tratam de processos que levam anos para ser possível observar os impactos negativos, podendo estar relacionada com diversas áreas como habitação, transporte, infraestrutura urbana e áreas verdes. Esta realidade também é observada em Guarulhos, já que boa parte da população desconhece os instrumentos participativos de construção de políticas urbanas da cidade, sentindo o reflexo de políticas excludentes na pele.

A pandemia da covid-19 nos mostrou um pouco os reflexos dessas políticas urbanas, e como a população, especialmente periférica, foi a mais afetada pela pandemia, seja pela necessidade de transportes públicos cheios (já os mais ricos moram em regiões mais estratégicas e tem carros), problemas urbanísticos e de infraestrutura (com a ausência de espaços de lazer abertos e maior densidade demográfica em bairros periféricos) e a má distribuição de equipamentos de saúde.

Para contribuir com esse debate, conversamos com o Prof. Dr. Janes Jorge, que nos ofereceu um panorama de como processos urbanos são capazes de impactar diferentes grupos que disputam o território urbano, e como as políticas urbanas afetam as diferentes classes sociais as durante a pandemia de covid-19. Janes é professor do EFLCH/UNIFESP – Campus Guarulhos, realizando pesquisas na área de história ambiental. É autor do livro Tietê, o rio que a cidade perdeu e organizou os livros Panoramas Ambientais do Brasil Rural e Cidades Paulistas: Estudos de História Ambiental Urbana.

Walter: Você poderia falar um pouco sobre o conceito de gentrificação e contar um pouco como este processo se deu na região metropolitana de São Paulo e em Guarulhos?

Janes: A gentrificação indica um processo em que a concentração de investimentos públicos e privados, em certa região da cidade, altera seu perfil social de maneira brusca. Por exemplo, quando um bairro operário se transforma em um bairro de classe média alta, com a desativação das fábricas e a instalação de condomínios residenciais caros. Ou quando uma região popular e histórica passa a ser frequentada por turistas, deslocando seus antigos ocupantes e frequentadores para outro lugar. Seria possível falar também da gentrificação nos estádios brasileiros, que foram substituindo os antigos espaços destinados ao torcedor pobre, as “gerais”, por cadeiras vendidas a um preço maior ou mesmo aumentando o preço dos ingressos das arquibancadas, de forma que os torcedores oriundos da classe trabalhadora foram banidos dos jogos dos grandes times atualmente.

Quando a cidade é organizada e gerida com base na lei do mercado isso ocorre, pois o mercado, agindo livremente, impede o ordenamento racional dos recursos tendo em vista a construção de uma ordem social justa, na qual o desenvolvimento humano, e não a acumulação do capital, seja a prioridade. Por outro lado, penso que é importante ressaltar que a cidade se relaciona com o que ocorre na sociedade de maneira ampla, em especial, com a economia. A queda dos rendimentos dos trabalhadores assalariados ou do pequeno comércio e serviços, o desemprego, também faz com que muitas pessoas tenham que deixar suas casas ou lugares de trabalho, pois ficam sem renda para poder mantê-los. É uma tragédia social enorme, que podemos vislumbrar quando transitamos nas cidades e vemos as ruas tomadas por pessoas empobrecidas em todos os lugares, em uma escala que não estávamos mais habituados a ver.

Walter: Como um governo popular poderia trabalhar com políticas urbanísticas e habitacionais em um período de pandemia?

Janes: Acredito que a prioridade de um governo popular nessa situação é garantir a vida das pessoas e nas melhores condições possíveis. Em uma época tão difícil como a que atravessamos seria preciso garantir que ninguém perdesse sua moradia em razão da crise econômica e mantivesse sua alimentação. Dai porque era tão importante que o auxílio emergencial tivesse acontecido ao longo de toda pandemia e com valores mais altos. Seria preciso também expandir fortemente os gastos públicos no âmbito dos serviços essenciais, o que ajudaria também a manter a economia funcionando minimamente.

Veja-se o caso do transporte público. Pensando-se na contenção da pandemia, quanto mais vazios operassem os ônibus ou os vagões do metrô e trem, melhor seria, pois haveria maior distanciamento entre os passageiros e melhor circulação do ar. Mas não foi isso o que ocorreu. Gerido de acordo com a lei do mercado, o transporte público reduziu o número de carros em operação para se adequar à diminuição do número de passageiros e manter a mesma relação de receita e despesa. Faz sentido do ponto de vista da acumulação do capital, mas não do ponto de vista humanístico. Existissem nas cidades da Região Metropolitana de São Paulo grandes empresas públicas de transporte, isso poderia ser feito. Do mesmo modo, o aumento abusivo da energia, em especial, o gás e a eletricidade, e da alimentação estão causando uma grande crise nas cidades brasileiras, com a fome se alastrando, as pessoas voltando a usar lenha para fazer comida.

Todo esse quadro de empobrecimento e crise não irá se resolver rapidamente com o fim da pandemia ano que vem, o que talvez ocorra. As sequelas da pandemia também ser farão sentir nas cidades e em sua gente. É preciso pensar o que pode ser feito no futuro próximo para superarmos essa situação terrível. Seja como for, não há dúvida que iremos precisar de uma ação estatal forte, pois, como a pandemia deixou claro, a ação ou a omissão do estado faz toda a diferença na superação de uma crise.