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Notas de uma guerra de pouca importância
Por Rodrigo Amorim
Era noite quando Marcelo trancou a entrada da lanchonete e desceu por entre as ruas e becos mal iluminados em direção a sua casa. Morava ali desde o nascimento e parecia conhecer a todos do bairro. Nas suas lembranças de infância, os edifícios que faziam parte daquele cenário não eram tão grandes. As maiores casas, naquele período, não deviam ter mais do que 2 andares. Mas parecia, agora, que o morro inteiro havia sido tomado de concreto, tijolos e madeira. Já não existia mais muito espaço para se ocupar e erigir novas casas. Parecia que a solução acordada no inconsciente coletivo de todos que por sorte ou necessidade haviam terminado ali era construir “pra cima”. Antigamente era possível olhar o centro da cidade lá de cima do morro, na porta de sua casa. Mas agora tudo o que se via era um labirinto, laranja cor de tijolo, que se estendia, como se fosse infinito, becos abaixo. Em uma das vielas, viu uma mulher idosa encostada no portão de ferro de sua casa. Ela pareceu demorar a notá-lo, como se estivesse em transe. Só percebeu sua presença quando ele a chamou.
-Eae Dona Mirian?
-Noite Marcelinho.
- E a Patrícia? Quando é que o bebezinho nasce.
- Ah. Falta alguns meses ainda. Mas ela está muito animada. Nunca vi essa menina tão feliz.
-Legal Dona Mirian. Manda um abraço pra ela faz favor.
-Tá Bem Marcelinho. Fica com Deus. Boa noite.
-A senhora também.
Dona Mirian demorou mais alguns minutos ainda antes de voltar para casa. Ficar ali sozinha era o que ela chamava de seu “momentinho de paz”. Naquela altura da vida, ela acreditava que poder desfrutar de um intervalo sem a presença da família era um privilégio. Não que ela não amasse os 3 filhos criados aos trancos e barrancos entre tanta adversidade e incerteza entre aquelas ruas ou os 4 netinhos que viviam a correr pela casa gritando e chamando por ela, quando era necessário resolver alguma disputa entre eles. Mas ela apreciava o silencio que era estar ali, sem ser evocada ou ter que acudir alguém da família. Ficava ali parada e meditativa, por longos minutos de silencio, até que alguém gritasse chamando por ela de dentro de casa ou o silencio começasse a se fazer incomodo demais além do que ela suportasse.
Quando ela entrou em casa novamente, teve que tomar cuidado para não pisar nos Legos espalhados na sala. Deu uma bronca (mas sem exagerar) em Luizinho, o neto mais novo. Chamou a atenção também de Roger, o mais velho, quando este se adiantou a apontar o culpado por aquela bagunça. - E você pare de ser X9 e ajude o seu primo. Oxe. - Após protestar, sem convicção, sobre a “injustiça” daquela bronca, Roger se pôs a ajudar as outras crianças a recolher os brinquedos.
Patrícia ainda estava acordada quando Dona Mirian passou em seu quarto, no terceiro andar, para ver como ela estava.
- Não conseguiu dormir ainda filha?
- Ai mãe, a barriga não ajuda muito. Eu até tento ficar de costas pro colchão, mas depois de alguns minutos, eu fico incomodada. Fico maluca pra poder dormir de bruços ou de lado que seja.
-É complicado filha, eu sei. Mas não tem jeito.
-Eu sei mãe. Não estou reclamando. Só comentando mesmo…
-Peraí filha, já volto.
Depois de alguns minutos, Dona Mirian voltou com uma cadeira de plástico e a posicionou ao lado da cama da filha.
- Ah não Mãe. Não precisa fazer isso. Vai lá ficar no quarto da senhora.
-Está tudo bem. Só vou ficar aqui com você, quietinha, até você conseguir pegar no sono.
Patrícia fechou novamente os olhos e botou a mão na barriga, tentando sentir os movimentos daquela vida que crescia dentro dela. Naquela noite sonhou com o avô, Seu José, que os havia deixado há mais de 20 anos. Aquele foi um sonho estranho, pois ela não teve muitas oportunidades de conhecê-lo bem, ao contrário dos irmãos mais velhos. Não pôde ter longas conversas de terna condescendência da parte dele, tampouco pôde escutar historias constrangedoras que a mãe realizara na juventude dela. Não houve tempo. Entretanto, lá estava ele, chamando ela de cima da escada da estação, com aquele sorriso marcante que fora eternizado nas fotos do álbum da família. Nas mãos ela segurava um bonequinho de pelúcia de um garotinho negro, o que era curioso, pois nunca vira aquele brinquedo antes. O avô a chamou novamente, dizendo que se ela não se apressasse ela ficaria perdida na estação. Ao ouvir aquilo, sentiu medo. Teve a sensação de desamparo que as crianças possuem quando imaginam a hipótese de serem abandonadas por seus parentes. Então, correu em direção ao avô, que lhe estendia a mão. Quanto mais se aproximava dele, mais segurança sentia, pois sabia que ao alcança-lo, tudo estaria bem.
Quando abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi a cadeira de plástico vazia ao lado da cama. A luz da manhã entrava no quarto pela janela. Quando chegou na cozinha, Dona Mirian revirava os armários em busca de algo.
- Nossa, acho que o café acabou. Vamos ter que comprar mais.
-Eu vou mãe.
-Não precisa filha, eu vou.
-Pode deixar mãe. Eu também preciso esticar um pouco as pernas. Não dormi muito bem a noite. Um sonhos estranhos…
- Tá bom então filha. Só toma cuidado na rua.
O mercadinho ficava há 5 minutos da casa dela, em uma esquina movimentada do bairro. Quando estava atravessando a rua em direção a entrada da loja, ouviu som de fogos. Então sentiu um solavanco que a atirou na rua. Não conseguiu entender o que havia acontecido nem como tinha ido parar no chão, mas se assustou quando, com horror, percebeu que não conseguiu se levantar. Em uma das mãos em que se apoiava, notou algo quente a encharcando. Era sangue.
-CORREU, CORREU – Gritou o capitão Beto, enquanto Flavio via o corpo da mulher gravida despencar no chão. A situação toda era caótica e ele não sabia dizer ao certo se o tiro que havia acertado a mulher partira de seu fuzil. Certamente não havia sido o primeiro a apertar o gatilho. Por alguns segundos que pareceram uma eternidade, teve a impressão que todos do pelotão haviam atirado. O capitão então sinalizou para que eles avançassem. Seguiram rua acima, em fila, apoiados na parede dos edifícios, cada um apontado sua arma para uma direção. Quando Flavio passou próximo do corpo de Patrícia, notou que ela não se movimentava mais. Apesar de toda agitação, ainda pôde notar as lagrimas que agora secavam no rosto da menina. – Vai dar merda.
As circunstancias da operação “Lex”, conflagrada pela polícia na comunidade, ocuparam as manchetes dos principais jornais naquele dia. Embora poucos veículos de mídia chamassem a atenção para a letalidade da operação que resultou em 25 mortos, o consenso dos telejornais parecia ser de exaltação da operação.
- … e tem gente que ainda vem defender esses VAGABUNDOS. Parabéns pra polícia. São 25 CPFs cancelados que não vão mais sair por aí assaltando ou vendendo drogas pra gente de bem. – Disse o ancora do jornal da tarde do canal 14, segunda maior audiência do horário, atrás apenas do programa de reprises de novelas do canal 3.
Noticiário das 06:00 do Jornal da Nação – …a polícia apreendeu 60kg de cocaína na operação realizada hoje à tarde na comunidade. Durante coletiva de imprensa realizada a tarde, o delegado responsável definiu a operação como “um sucesso”.
- Essas comunidades são dominadas pelo tráfico. É um absurdo que a polícia seja criticada por operações como essas. Ainda estamos realizando a perícia no local, mas tenho informações preliminares de que a maioria dos indivíduos que morreram na operação de hoje tinham envolvimento com o tráfico. Quantas vidas foram perdidas para as drogas? Não vejo ninguém da imprensa criticar essas coisas.
Uma jornalista da coletiva – Delegado, uma mulher gravida está entre as vítimas e testemunhas afirmam que ela foi baleada pela polícia. O senhor tem algo a dizer a respeito disso?
- Uma sindicância será instaurada para investigar eventuais desvios de procedimentos por parte dos envolvidos na operação e …
Marcelo desligou a televisão da lanchonete e olhou para a rua. Depois dos acontecimentos do dia, parecia que o tempo havia simplesmente parado na comunidade, como se um véu tivesse sido colocado sobre a cabeça de todos que moravam ali e os tivesse separado do resto da realidade. Após baixar a porta do estabelecimento e tranca-la com cadeado, desceu pelas ruas e becos em direção de casa. Realizava esse trajeto há pelo menos 10 anos, e poucas vezes via mudanças no percurso que eram dignas de atenção. Uma dessas constantes era a presença de Dona Mirian na porta da casa dela. A troca de amenidades entre eles era parte fundamental de sua rotina. Porém, ela não estava lá. Depois de hoje, duvidava de que alguma vez estaria de novo.
In memoriam Kathlen Romeu
Kathlen Romeu, 25 anos, morreu depois de uma suposta troca de tiros entre a polícia militar do Rio de Janeiro e traficantes da comunidade do Barro Vermelho, em Lins de Vasconcelos, na zona norte da cidade maravilhosa. Kathlen estava grávida de 14 semanas do primeiro filho.