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O Cinema entre a Realidade e a Distopia
Por Luka Oliveira, Thiago Alves e Caroline Locatelli
Não é de hoje que as distopias têm alcançado bastante fama entre o público jovem-adulto. Entre os anos 1980 – 90 já era bem comum usar meios de entretenimento para produzir uma “crítica”. Basicamente a ficção sempre foi um meio interessante para demonstrar a realidade de maneira crítica. Mas afinal, o que é uma distopia?
Podemos entender Distopia, inicialmente como um conceito de crítica social e Política. Apesar de bem abrangente e diverso, a distopia sempre nos traz uma situação de extrema opressão e angústia. A distopia é um alerta de conscientização para aqueles que ainda estão anestesiados com a realidade e não enxergam o absurdo diante de si.
Neste espírito, a literatura nos proporcionou grandes obras atemporais, como “1984” de George Orwell, “Admirável Mundo novo” de Aldous Huxley e “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, que continuam em alta no interesse público e provoca em nós, leitores, um certo incômodo com a nossa realidade.
O cinema não fica para trás no gênero distópico, além das adaptações cinematográficas destes livros, podemos ver através da lente da sétima arte, diversas outras obras filmográficas que colaboram com o gênero distópico. Se uma utopia é a construção de dogmas justos e iguais para uma sociedade, a distopia é justamente a desconstrução da condição humana e o extremo do controle social.
Podemos colocar essa devastação e desconstrução da condição humana não só a partir dos regimes nazifascistas da década de 30, mas também do momento em que os Estados Unidos disparam bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki. O cenário distópico é construído a partir de um momento de entreguerras ou de uma guerra que ainda está por vir. Segundo o gênero da distopia, a guerra ou o medo da guerra, funciona, nas mãos de líderes autoritários, como uma excelente manobra de dominação social.
No atual cenário sociopolítico do Brasil, esse gênero é mais necessário do que nunca. Não estou falando de usar a distopia como “denúncia de realidade” ou algo assim, isso já é feito pelo movimento “Realismo”. A Distopia caminha mais no aspecto provocativo da coisa. Satirizando os aspectos sociais, a instabilidade humana, o controle industrial, e principalmente como um cenário de fome, desemprego e fanatismo religioso são perfeitos para instaurar na sociedade um governo opressivo. Quando falamos de distopia estamos necessariamente falando em desconstruir narrativas políticas que foram construídas socialmente através de classes dominantes.
O cinema em momentos oportunos da história, já fez sua manifestação a respeito do que pensava. Há uma intensa produção cinematográfica delatando os horrores e um caos de uma distopia. A partir de 1980, com o avanço de tecnologias e da ciência, esse tema foi ainda mais alimentado no cinema.
Na coluna de hoje trazemos para você nosso leitor, um filme que à sua maneira, narra uma distopia. A nossa colunista Carol, traz uma reflexão sobre o filme Gattaca.
Gattaca: O DNA e os seus degraus
“Vejam a obra de Deus: Quem pode endireitar o que Ele fez torto?”
— Eclesiastes 7:13
“Não só acho que devemos interferir na Mãe Natureza, eu penso que é isso que ela deseja.” — Willard Gaylin
É com essas duas frases contraditórias que é iniciado o filme americano Gattaca, produzido em 1997 pelo diretor e roteirista neozelandês, Andrew Niccol, que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Original no ano seguinte, pelo filme The Truman Show.
Elaborando uma breve sinopse, o filme acompanha a história do Vincent Anton Freeman, um humano gerado de forma natural em uma sociedade distópica. Desde o início temos o vislumbre de uma Era em que a manipulação genética está avançada e os embriões são gerados através da inseminação artificial, com edição do DNA para formação de um código genético compatível com as características exigidas pelos pais.
Ao analisarmos os avanços científicos dos anos 90, conseguimos entender a mente do Andrew Niccol e o que o levou a pensar nesse roteiro, como a representação artística é um reflexo do pensamento do criador e dos acontecimentos de sua época, essa análise é fundamental para a compreensão da obra em sua totalidade.
Vincent Anton Freeman é uma criança “nascida no amor”, ou seja, de formas naturais.
“Nunca entendi porque minha mãe resolveu confiar em Deus, não nos geneticistas”.
A causa e a idade aproximada da morte de um indivíduo é definida em seu nascimento. Logo, assim como um produto Vincent nasce com a sua data de validade, visto por todos como um doente crônico e tendo expectativa de vida de 30 anos.
Para corrigir a “falha”, os pais de Vincent decidem ter outro filho, dessa vez artificialmente, eliminando-se a predisposição para calvície prematura, miopia, alcoolismo e doenças. Assim nasce Anton, nome que a princípio seria de Vincent, nomeado de Vincent Anton, pois o pai opta por não colocar o seu nome como o primeiro daquela criança imperfeita.
“Foi assim que o meu irmão Anton veio ao mundo. Um filho que o meu pai considerava digno do seu nome”.
Eu estaria sendo displicente se não citasse a correlação de Gattaca e a obra Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, livro publicado em 1932.
Em Admirável Mundo Novo somos apresentados ao Processo Bokanovsky, uma maneira genética de gerar humanos de forma fabril, semelhante aos moldes do fordismo. Aliás, na obra temos uma clara referência a esse modelo de produção, vemos uma sociedade que idolatra o grande Ford T, sendo este o nome do primeiro modelo de carro produzido em massa por Henry Ford, de enorme expressão na Segunda Revolução Industrial.
“Um ovo, um embrião, um adulto — é o normal. Mas um ovo bokanovskizado tem a propriedade de germinar, proliferar, dividir-se: de oito a noventa e seis germes, e cada um destes se tornará um embrião perfeitamente formado, e cada embrião, um adulto completo. Assim se consegue fazer crescer noventa e seis seres humanos em um lugar só…”
No livro de Huxley também há uma segregação dos nascidos de formas naturais, sendo estes chamados de Selvagens e vistos com asco pela população modernizada e industrial, os Selvagens são os periféricos.
No filme, ao acompanharmos o crescimento dos dois irmãos e conseguimos compreender as diferenças entre um indivíduo nascido em útero e um manipulado em laboratório como planta enxertada. Apesar de o Anton ser mais jovem do que o Vincent, ele tem vantagens físicas e sociais que o Vincent não tem, além de rapidamente se tornar mais alto do que o irmão. Uma das cenas marcantes e posteriormente repetida, é a corrida de nado entre ambos, presumivelmente o Vincent perde para o Anton.
Além disso, há um enorme preconceito social que pode ser visto em diversos momentos do filme, muitas vezes partindo da própria família, como quando Vincent propõe um pacto de sangue com o irmão, e este se recusa a compartilhar o sangue com o dito inferior. Isso se repete quando o pai menospreza o sonho de Vincent de viajar para o espaço:
“Você só estará em uma nave se for para limpá-la”.
Apesar de ser um filme de ficção científica, eu não posso deixar de citar as semelhanças com a realidade, pois o mesmo ocorre com o preto e pobre, como cantado por Bia Ferreira na música Cota não é Esmola:
“Agora ela cresceu, quer muito estudar
Termina a escola, a apostila, ainda tem vestibular
E a boca seca, seca, nem um cuspe
Vai pagar a faculdade, porque preto e pobre não vai pra USP
Foi o que disse a professora que ensinava lá na escola
Que todos são iguais e que cota é esmola
Cansada de esmolas e sem o dim da faculdade
Ela ainda acorda cedo e limpa três apartamentos no centro da cidade
Experimenta nascer preto, pobre na comunidade
Cê vai ver como são diferentes as oportunidades”
E todo o filme é pautado nessa diferença de tratamentos entre indivíduos, mostrando que algumas pessoas precisam subir mais degraus do que outras para atingirem um mesmo sonho. Na obra não é mencionado racismo, mas temos o “genoismo”, que é a prática de discriminação pelos genes, as células são o cartão de visitas e o currículo. Nesse futuro idealizado e não ideal, existe uma nova prática de discriminação que vai além do status social, país de origem ou cor da pele, e ao ir em uma entrevista de emprego, Vincent escancara essa prática.
“Se você se recusa a fazer os exames, eles pegam uma amostra de uma maçaneta, de um aperto de mão, ou da saliva do envelope do formulário”.
Visivelmente há uma intenção do Andrew de fazer crítica aos avanços tecnológicos da década e os problemas que esses estudos gerariam.
Em 1990 foi fundado o Projeto Genoma Humano (PGH), encabeçado pelos Estados Unidos contou com o apoio de cientistas de 18 países, tendo como principal objetivo a identificação de genes associados à propensão de doenças, para assim promover diagnósticos e tratamentos precoces, evitando assim o desenvolvimento das mesmas. No entanto, houve um conflito entre dois grupos, os responsáveis pelo projeto defendiam que o estudo seria de validade para cura de comorbidades como: hipertensão, diabetes, câncer, hipertensão. Enquanto a oposição alegava que isso seria utilizado como forma discriminatória em processos seletivos de emprego, na situação a qual um candidato poderia ser recusado por revelar ter pré-disposição ao uso de drogas ou alcoolismo. Outrossim, o preconceito genético poderia se ampliar ao fenótipo do indivíduo ou ainda, ser utilizada por planos de saúde para detecção de propensão de doenças para aumentar o valor do plano ou recusar a integração.
Ainda em 1990, os alimentos geneticamente modificados foram produzidos em escala comercial, estes eram manipulados através da transgenia desde 1970, que consistia no processo de alteração do material genético através da inserção de sequências genéticas de outras espécies. Com a heterogenia, foi possível gerar organismos com características que não eram próprias da espécie, sendo algumas dessas: produção de toxinas que agem contra pragas, aumento do tamanho do fruto, proteção contra herbicidas, entre outras. Atualmente essa técnica é realizada manualmente por agricultores sendo conhecida como enxertia.
Em fevereiro de 1997, ano do lançamento de Gattaca, os cientistas tornaram pública a experiência de clonagem que estava sendo realizada com a ovelha Dolly, que utilizava um método precursor da CRISPR.
A CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats ), em português, Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Interespaçadas, consiste em uma edição de genes em que é utilizada a proteína C9 para remoção de uma sequência específica de DNA, para inserção de outra que permite a regeneração dos próprios genes. Esse método para tratamento e diagnóstico prévio de doenças concederam a microbiologista Emmanuele Charpentier e a bioquímica Jennifer Doudna o Prêmio Nobel de Química em 2020.
Vincent, por ter conhecimento de sua condição e as barreiras que eram lhe impostas por ser um humano uterino, consegue apenas um emprego de limpeza na agência espacial, sempre interrompendo o trabalho para completar os foguetes saindo do solo terrestre.
Por fim, cansado de sua condição, Vincent decide por contratar um serviço para falsificação de identidade.
“Eu sabia que aquilo era só bravata minha, não importaria o quanto eu treinasse ou estudasse, uma nota máxima não adiantaria sem o devido exame de sangue.”
E assim ele assume a identidade de Jerome Eugene Morrow, sendo descrito como um homem praticamente imortal, de QI incomparável, visão perfeita em ambos os olhos e um coração semelhante ao de um touro, além de medalhista na natação. Jerome vendeu a sua identidade, pois foi vítima de um acidente de carro e se tornou paraplégico.
Para se encaixar em sua nova identidade, Vicent passa por procedimentos cirúrgicos para alterar a altura, treina para ser destro e troca seus óculos por lentes de contato, para que a miopia não seja notada.
Com a mudança de identidade Vincent é aprovado na entrevista e muda de cargo na empresa, provando que o mais importante nessa análise era o seu código genético e não os seus conhecimentos e aptidões.
No entanto, ele precisava diariamente coletar o material genético do Jerome para fazer os testes frequentes de exame de sangue e urina, que sempre eram substituídos pelo do Jerome, além de realizar a própria limpeza, eliminando os vestígios de sua verdadeira identidade.
“E foi assim, todo dia eu me livrava dos fios soltos, limpava unhas e pele para limitar os resquícios do meu corpo ‘inválido’ que eu deixava no mundo ‘válido’”.
Depois de Vincent assumir a identidade de Jerome, Jerome pede para que Vincent o chame de Eugene, sendo uma brincadeira do diretor com a palavra Eugenia, do grego antigo, bom nascimento, boa origem. É uma ironia dado que Eugene está em situação de vulnerabilidade, o mesmo acontece na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas do Machado de Assis, temos a personagem Eugênia que é cocha.
Outro jogo do diretor pode ser observado no cenário, a casa de Eugene conta com uma longa escada em espiral com a aparência de um DNA, Eugene fica impossibilitado de subir depois do acidente, representando a impossibilidade de ascensão social.
“Eugene nunca tinha sofrido as discriminações aos ‘uterinos’, aos ‘filhos da fé’, ‘inválidos’, como éramos chamados. Como um ‘válido’, um ‘in vitro’, um ‘programado’, ele carregava um outro fardo, o fardo da perfeição”.
Percebemos então que Eugene também carrega um peso, o peso da exigência social de que ele sempre tenha excelentes desempenhos devido a sua condição genética. Não é permitido que ele falhe, ele possui uma medalha de nado de segundo lugar, e a expectativa social para com ele só faz com que ele se sinta pior. Descobrimos que o acidente de carro foi proposital e uma tentativa de Eugene de tirar a própria vida, isso não foi previsto pelos cientistas.
De maneira contrastante, temos um personagem que ninguém espera nada dele, e outro que todos esperam os melhores resultados partindo dele.
Quando ocorre um assassinato no local de trabalho de Vincent é iniciada uma investigação com uma coleta ainda maior de provas genéticas na tentativa de encontrar o culpado pelo crime. O assassinato e o assassino não são relevantes para a trama, a preocupação maior é que Vincent seja descoberto como “inválido” durante essas coletas. Novamente vemos uma inspiração dos avanços da época, pois nos anos 90 a identificação de DNAs passou a ser utilizada em investigações criminais, sendo os vestígios biológicos coletados e encaminhados para um laboratório forense.
Outra demonstração do preconceito da sociedade é quando Irene, com interesse amoroso em Vincent, coleta um fio de cabelo do mesmo e em seguida procura um laboratório para realizar a análise do material genético.
Em outra disputa de nado de Vincent com o seu irmão, Vincent vence e menciona que o segredo para a vitória é que ele nunca guarda energias para a volta, sendo que ele dá tudo de si para conseguir alcançar os resultados, ele sabe que para ele tudo é mais difícil.
E aqui eu poderia adotar um discurso meritocrático de que Vincent se esforçou e conseguiu atingir os seus objetivos, mas Vincent precisou abdicar da sua identidade para conseguir algo que um privilegiado poderia conseguir facilmente. Ele teve que depositar todas as suas energias no nado, sem se preocupar em voltar, correndo o risco de ficar à deriva no mar. Ele precisa se esforçar triplamente mais do que os outros personagens para ter reconhecimento, para realizar os seus sonhos, Vincent não inicia o filme no mesmo degrau nessa escada genética.
Por fim Vincent consegue viajar para o espaço, e em paralelismo o Eugene entra em um incinerador e tira a própria vida, mas antes, em uma conversa com Vincent ele diz.
“Eu te emprestei o meu corpo e você me emprestou o seu sonho”.
Recentemente tivemos o voo de dois empresários ao espaço, Richard Branson e Jeff Bezos. Branson disse aos jornalistas:
“É uma nova Era, vamos tornar o espaço mais acessível para todos”
Quando Branson diz isso, ele está se referindo aos bem nascidos, as pessoas com dinheiro, quantos Vincents conseguiriam entrar em uma nave da Virgin Galactic ou da Blue Origin? O filme não quer ressaltar que todos são capazes, o filme quer mostrar a desigualdade por viés ficcional, o Vincent nunca teria conseguido se não tivesse fraudado o sistema, os seus estudos não foram o suficiente quando há uma clara visão homogênica.
Na viagem de Jeff Bezos não tivemos uma tripulação com funcionários da Blue Origin ou da Amazon, tivemos o filho de um rico empresário que pode pagar para enviar o seu filho, de bons genes. Mas será que um dia chegará a vez do mecânico das aeronaves? Da pessoa que cuida da limpeza? O Acessível não é de acesso para todos.
Thiago Alves, estuda programação e faz parte do A-Sol desde março de 2020.
Luka Oliveira, é estudante de Filosofia, pesquisador de Filosofia e Cinema pelo GECEF. Professor voluntário no Cursinho Comunitário A-Sol
Caroline Locatelli, apaixonada por livros e cinema, amante do ínfimo ao infinito.